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Kieslowski desenvolve moral ambígua em "A Cicatriz"
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Há uma cena no início de "A Cicatriz" (1976), primeiro filme de
Krysztof Kieslowski distribuído
apenas a partir do ano passado
após ter sido censurado e proibido
na Polônia, em que a mão do diretor não deixa dúvidas quanto à
carreira que ali se anunciava.
Kieslowski (1941-96) ficou conhecido sobretudo pelo "Decálogo" (1987-89) e pela trilogia
(1993-94) -menos espantosa-
de "A Liberdade É Azul", "A
Igualdade É Branca" e "A Fraternidade É Vermelha", além do
esotérico e um tanto constrangedor "A Dupla Vida de Véronique" (1991).
Em todos esses filmes, há um
fundo moral, de fábula, em que a
sombra de Deus e da religião (católica) contribui para a atmosfera
metafísica com que o cineasta envolve as situações mais casuais, as
coincidências e os dilemas mais
humanos de seus personagens.
"A Cicatriz" parece à primeira
vista mais uma fábula de conotação social com clima de documentário, como tantos outros filmes
poloneses da época. Trata da construção de uma fábrica numa floresta nos arredores de uma pequena cidade, de como essa decisão é
tomada, dos interesses políticos
em jogo e das consequências para
a população e o meio ambiente.
É, porém, uma cena curiosamente muito prosaica logo no início que deixa entrever a aspiração
metafísica do cineasta: um grupo
de homens representantes do poder vai de carro até o local, no
meio da floresta, onde estão previstas as obras.
A câmera os observa de longe,
descendo dos carros no meio das
"árvores de 200 anos", e, de repente, o barulho das portas batendo uma após a outra, um som de
início banal e insignificante, vai
ganhando, pela insistência, um
sentido ostensivo, quase religioso,
que será sublinhado em seguida,
ao longo do filme, pela música de
ficção científica.
É com essa cena que o espectador entende que o que está assistindo é maior do que um simples
"filme social". Há uma perturbação ali, que é mais do que uma mera fábula política.
Porque, ao contrário da denúncia ou do protesto, que na maioria
das vezes apresentam uma saída,
no fundo, nem o próprio filme parece conhecer a solução para aquilo de que trata, apenas expondo,
perplexo -e muitas vezes enojado-, o que os homens fazem com
a criação de Deus.
Se, por um lado, esse ponto de
vista metafísico, aqui ainda um
pouco acanhado diante da questão
social mais imediata (se comparado aos filmes posteriores do cineasta), garante a Kieslowski uma
originalidade e um estilo que lhe é
natural, sem precisar lançar mão
de nenhum maneirismo, por outro, exala uma moral que, embora
difusa, parece ser não apenas conservacionista, mas conservadora.
O protagonista é um engenheiro
nomeado para dirigir a instalação
da fábrica na sua cidade natal, onde não pisa há anos, desde o tempo em que a mulher cometeu um
ato político que a impede de
acompanhá-lo de volta desta vez.
O dilema do engenheiro será o
de ter de se resignar diante da fábrica destruindo a floresta, da filha fazendo abortos, da estupidez
dos homens dando cigarros para
os animais comerem -ou seja, da
corrupção da natureza.
É nesse ponto que Kieslowski vai
associar o conservacionismo a
Deus, ao conservadorismo e a
uma verdade moral contra a mentira, a desonestidade e a imoralidade dos que corrompem a vida.
Deus ainda não está totalmente
explícito nesse primeiro filme do
cineasta, mas vence quando a filha
decide não abortar e o engenheiro
por fim se recusa a continuar participando desse mundo corrupto,
para ficar cuidando do netinho.
A ambiguidade conservadora
dessa moral, associando integridade, verdade e Deus (um deus católico e polonês), deixa de pé atrás
até mesmo o espectador que reconhece em Kieslowski a originalidade e o estilo próprio de um verdadeiro cineasta.
Filme: A Cicatriz
Produção: Polônia, 1976
Direção: Krysztof Kieslowski
Com: Franciszek Pieczka, Mariusz
Dmochowski
Quando: a partir de hoje, nos cines...
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