São Paulo, sexta, 17 de julho de 1998

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Kieslowski desenvolve moral ambígua em "A Cicatriz"

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Há uma cena no início de "A Cicatriz" (1976), primeiro filme de Krysztof Kieslowski distribuído apenas a partir do ano passado após ter sido censurado e proibido na Polônia, em que a mão do diretor não deixa dúvidas quanto à carreira que ali se anunciava.
Kieslowski (1941-96) ficou conhecido sobretudo pelo "Decálogo" (1987-89) e pela trilogia (1993-94) -menos espantosa- de "A Liberdade É Azul", "A Igualdade É Branca" e "A Fraternidade É Vermelha", além do esotérico e um tanto constrangedor "A Dupla Vida de Véronique" (1991).
Em todos esses filmes, há um fundo moral, de fábula, em que a sombra de Deus e da religião (católica) contribui para a atmosfera metafísica com que o cineasta envolve as situações mais casuais, as coincidências e os dilemas mais humanos de seus personagens.
"A Cicatriz" parece à primeira vista mais uma fábula de conotação social com clima de documentário, como tantos outros filmes poloneses da época. Trata da construção de uma fábrica numa floresta nos arredores de uma pequena cidade, de como essa decisão é tomada, dos interesses políticos em jogo e das consequências para a população e o meio ambiente.
É, porém, uma cena curiosamente muito prosaica logo no início que deixa entrever a aspiração metafísica do cineasta: um grupo de homens representantes do poder vai de carro até o local, no meio da floresta, onde estão previstas as obras.
A câmera os observa de longe, descendo dos carros no meio das "árvores de 200 anos", e, de repente, o barulho das portas batendo uma após a outra, um som de início banal e insignificante, vai ganhando, pela insistência, um sentido ostensivo, quase religioso, que será sublinhado em seguida, ao longo do filme, pela música de ficção científica.
É com essa cena que o espectador entende que o que está assistindo é maior do que um simples "filme social". Há uma perturbação ali, que é mais do que uma mera fábula política.
Porque, ao contrário da denúncia ou do protesto, que na maioria das vezes apresentam uma saída, no fundo, nem o próprio filme parece conhecer a solução para aquilo de que trata, apenas expondo, perplexo -e muitas vezes enojado-, o que os homens fazem com a criação de Deus.
Se, por um lado, esse ponto de vista metafísico, aqui ainda um pouco acanhado diante da questão social mais imediata (se comparado aos filmes posteriores do cineasta), garante a Kieslowski uma originalidade e um estilo que lhe é natural, sem precisar lançar mão de nenhum maneirismo, por outro, exala uma moral que, embora difusa, parece ser não apenas conservacionista, mas conservadora.
O protagonista é um engenheiro nomeado para dirigir a instalação da fábrica na sua cidade natal, onde não pisa há anos, desde o tempo em que a mulher cometeu um ato político que a impede de acompanhá-lo de volta desta vez.
O dilema do engenheiro será o de ter de se resignar diante da fábrica destruindo a floresta, da filha fazendo abortos, da estupidez dos homens dando cigarros para os animais comerem -ou seja, da corrupção da natureza.
É nesse ponto que Kieslowski vai associar o conservacionismo a Deus, ao conservadorismo e a uma verdade moral contra a mentira, a desonestidade e a imoralidade dos que corrompem a vida.
Deus ainda não está totalmente explícito nesse primeiro filme do cineasta, mas vence quando a filha decide não abortar e o engenheiro por fim se recusa a continuar participando desse mundo corrupto, para ficar cuidando do netinho.
A ambiguidade conservadora dessa moral, associando integridade, verdade e Deus (um deus católico e polonês), deixa de pé atrás até mesmo o espectador que reconhece em Kieslowski a originalidade e o estilo próprio de um verdadeiro cineasta.

Filme: A Cicatriz Produção: Polônia, 1976 Direção: Krysztof Kieslowski Com: Franciszek Pieczka, Mariusz Dmochowski Quando: a partir de hoje, nos cines...


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