|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Mostra no Sesc tem como tema o Mediterrâneo e destaca peça italiana inspirada em obra do francês Jean Genet
Mar sem fim
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
Larache, a cerca de 70 quilômetros de Tânger, no Marrocos,
abriga o corpo de Jean Genet, escritor e dramaturgo francês morto em 1986. O Mediterrâneo, que
banha a cidade, não é somente
seu porto final.
O lugar onde viveu durante cerca de 25 anos foi também nascente de muitos dos personagens que
povoam a obra do autor de "O
Balcão", "Querelle" e "Nossa Senhora das Flores". E que se reencontrarão no espetáculo "Cinema
Cielo", do italiano Danio Manfredini, destaque do mar de atrações
da Mostra Sesc de Artes, que, neste ano, tem como tema justamente o Mediterrâneo.
A peça, criada por Manfredini
entre 2002 e 2003 e que será apresentada em italiano, com legendas em português, não é mera recriação de "Nossa Senhora das
Flores", embora venha deste romance de 1944 sua principal inspiração. Antes, é uma tentativa do
autor e diretor italiano de encontrar, no mundo de hoje, os ecos da
obra de Genet.
Para tanto, Manfredini escolheu
um cinema pornô como cenário
para o encontro dos tipos marginais de Genet, como o transexual
Divine, que ele mesmo interpreta.
No lugar da tela, o público.
"O espetáculo fala de um mundo, de seus habitantes, de suas vidas, que podem ser lidas através
do comportamento de seus corpos", diz Manfredini, em entrevista à Folha.
"A peça também fala dos seus
destinos e da impossibilidade de
ver o aspecto heróico, que recobre
os personagens de Genet, envoltos em tragédia, enquanto os personagens do cinema se encontram muitas vezes presos numa
comédia grotesca."
O cinema Cielo (céu ou paraíso,
em italiano) realmente existiu e
foi fechado há alguns anos em Milão, cidade natal de Manfredini.
No cinema da peça, os personagens do romance de Genet são colocados no filme, que não se vê,
mas se ouve. Eles falam de seus
encontros, estados de ânimo e
destinos. Mas, como adianta o diretor, estes tipos se expressam
mais com seus corpos do que com
palavras.
"As aventuras amorosas que
acontecem na sala acenam para
breves diálogos, através dos quais
é possível adivinhar a parte de
suas vidas que não é contada. E
sua dificuldade de embarcar, no
dia-a-dia, numa vida economicamente precária", destaca.
Para o diretor, o cinema pornô é
o lugar ideal para desmascarar ao
menos alguns fragmentos da humanidade. É, diz ele, o lugar onde
as pessoas deixam cair por terra
suas imagens edulcoradas e permitem que uma parte menos controlada de suas vidas, mais instintiva, venha emergir. E é daí que
Manfredini afirma colher os momentos poéticos do espetáculo,
poesia a partir da pornografia.
"Mas não creio que haja pornografia na peça. Posso usar uma
metáfora para me explicar melhor: se começo a falar com uma
prostituta, posso falar sobre vários assuntos com ela. Ainda assim, sei que ela é uma prostituta e
que há nela um mundo que posso
imaginar. No entanto, naquele
momento, não é algo manifesto."
Manfredini conta que sempre
foi fascinado pela obra de Genet,
curiosamente menos por suas peças, mas sobretudo por sua poesia
e seus romances, por conta da sinceridade e da franqueza com que
o autor revela sua interioridade.
E, apesar da pornografia em sua
obra, o diretor não vê a perversão
como o tema central de Genet.
"Mas sim como forma de abordar o tema do mal, como necessidade de reconhecer as sombras e
tentativa de não escapar da consciência da morte", analisa ele.
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Italianos e Cacá Carvalho sondam Dom Quixote Índice
|