São Paulo, quarta-feira, 17 de agosto de 2005

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Mostra no Sesc tem como tema o Mediterrâneo e destaca peça italiana inspirada em obra do francês Jean Genet

Mar sem fim

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

Larache, a cerca de 70 quilômetros de Tânger, no Marrocos, abriga o corpo de Jean Genet, escritor e dramaturgo francês morto em 1986. O Mediterrâneo, que banha a cidade, não é somente seu porto final.
O lugar onde viveu durante cerca de 25 anos foi também nascente de muitos dos personagens que povoam a obra do autor de "O Balcão", "Querelle" e "Nossa Senhora das Flores". E que se reencontrarão no espetáculo "Cinema Cielo", do italiano Danio Manfredini, destaque do mar de atrações da Mostra Sesc de Artes, que, neste ano, tem como tema justamente o Mediterrâneo.
A peça, criada por Manfredini entre 2002 e 2003 e que será apresentada em italiano, com legendas em português, não é mera recriação de "Nossa Senhora das Flores", embora venha deste romance de 1944 sua principal inspiração. Antes, é uma tentativa do autor e diretor italiano de encontrar, no mundo de hoje, os ecos da obra de Genet.
Para tanto, Manfredini escolheu um cinema pornô como cenário para o encontro dos tipos marginais de Genet, como o transexual Divine, que ele mesmo interpreta. No lugar da tela, o público.
"O espetáculo fala de um mundo, de seus habitantes, de suas vidas, que podem ser lidas através do comportamento de seus corpos", diz Manfredini, em entrevista à Folha.
"A peça também fala dos seus destinos e da impossibilidade de ver o aspecto heróico, que recobre os personagens de Genet, envoltos em tragédia, enquanto os personagens do cinema se encontram muitas vezes presos numa comédia grotesca."
O cinema Cielo (céu ou paraíso, em italiano) realmente existiu e foi fechado há alguns anos em Milão, cidade natal de Manfredini. No cinema da peça, os personagens do romance de Genet são colocados no filme, que não se vê, mas se ouve. Eles falam de seus encontros, estados de ânimo e destinos. Mas, como adianta o diretor, estes tipos se expressam mais com seus corpos do que com palavras.
"As aventuras amorosas que acontecem na sala acenam para breves diálogos, através dos quais é possível adivinhar a parte de suas vidas que não é contada. E sua dificuldade de embarcar, no dia-a-dia, numa vida economicamente precária", destaca.
Para o diretor, o cinema pornô é o lugar ideal para desmascarar ao menos alguns fragmentos da humanidade. É, diz ele, o lugar onde as pessoas deixam cair por terra suas imagens edulcoradas e permitem que uma parte menos controlada de suas vidas, mais instintiva, venha emergir. E é daí que Manfredini afirma colher os momentos poéticos do espetáculo, poesia a partir da pornografia.
"Mas não creio que haja pornografia na peça. Posso usar uma metáfora para me explicar melhor: se começo a falar com uma prostituta, posso falar sobre vários assuntos com ela. Ainda assim, sei que ela é uma prostituta e que há nela um mundo que posso imaginar. No entanto, naquele momento, não é algo manifesto."
Manfredini conta que sempre foi fascinado pela obra de Genet, curiosamente menos por suas peças, mas sobretudo por sua poesia e seus romances, por conta da sinceridade e da franqueza com que o autor revela sua interioridade. E, apesar da pornografia em sua obra, o diretor não vê a perversão como o tema central de Genet.
"Mas sim como forma de abordar o tema do mal, como necessidade de reconhecer as sombras e tentativa de não escapar da consciência da morte", analisa ele.


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