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CONTARDO CALLIGARIS
"Anjos do Sol"
"Os nossos" apenas chegam no cinema de Hollywood. É só um truque de marqueteiro?
ESTRÉIA AMANHÃ "Anjos do
Sol", de Rudi Lagemann. O filme conta a história de Maria,
uma menina do sol que se torna menina da noite.
A cada ano, centenas de meninas,
mal chegadas à adolescência, são
vendidas pelos pais, leiloadas a notáveis famintos de carne virgem (carne do sol, não é?) e entregues a cafetões que as escravizam pelas zonas
rurais e pelos garimpos do país.
A existência desse pequeno exército foi denunciada pelo dossiê
"Crianças da Amazônia" e, logo, em
1991-92, pelas reportagens de Gilberto Dimenstein nesta Folha, que
confluíram no livro "Meninas da
Noite". Agora, as meninas da noite
têm uma cara em nosso imaginário
coletivo: a cara de Maria.
"Anjos do Sol" é terno e brutal,
narrado com simplicidade e sem
simplismo. Os atores são notáveis:
além de Fernanda Carvalho (Maria), é preciso mencionar Antônio
Calloni (Saraiva, o cafetão do garimpo), Bianca Comparato (Inês) e
Mary Sheila (Celeste). A história
prende, comove e indigna.
Na saída do cinema, fiquei questionando um pensamento que me
acompanhou ao longo do filme.
Enquanto assistia a "Anjos do
Sol", "sabia" que ninguém ajudaria
Maria e suas companheiras. Um
trunfo final da justiça me pareceria
"falso". No entanto, eu não parava
de esperar que, naquele garimpo
perdido, aparecesse um Bruce Willis que esvaziasse sua Colt 45 automática na cara do Saraiva e do
torvo guardinha sentado na entrada do bordel com um calibre 12 na
mão. Esperava pela chegada de
John Wayne e do sétimo regimento de cavalaria, dos médicos de
"ER", de Arnold Schwarzenegger
ou da turma de "Law and Order". O
Inspetor Clouseau teria sido suficiente. CADÊ OS NOSSOS?
Fora a irritação contida de um
agente de saúde reduzido ao silêncio pelas ameaças veladas de Saraiva, não chegou ninguém.
Você, leitor, dirá que olho para o
mundo pelos moldes colonizadores das narrativas hollywoodianas
típicas. Concordo. E admito que as
narrativas hollywoodianas parecem ser construídas para gratificar
nosso narcisismo: mesmo nas piores, podemos nos identificar com o
herói salvador que nunca falta no
elenco. Mas essa retórica hollywoodiana talvez não seja apenas
estratégia de marketing. Explico.
Em "Anjos do Sol", há uma longa
fila de adultos que têm o destino de
Maria nas mãos: família, intermediário, transportadores, cafetina e
cafetão, capataz, deputado, fazendeiro com seu filho adolescente,
garimpeiros, agente de polícia vendido. Como disse, parecia-me verossímil que nessa fila não houvesse ninguém para dizer: "Basta".
Não penso que, em outras latitudes, Maria teria tido mais chances
de esbarrar em alguém que, além
de se indignar, decidisse arriscar,
agir, se meter.
Ao contrário, quem leu "Meninas da Noite" lembra que, no fim,
Dimenstein conseguiu levar a Polícia Federal até o bordel. Alguém,
um jornalista, não se contentou em
registrar os fatos e se indignar: tomou posição, disse "não" e desfez
uma corrente de perversidades.
Por que, então, ao assistir a "Anjos do Sol", parecia-me verossímil
que ninguém resistisse?
A sensação de verossimilhança
(como já notou Aristóteles) não
depende dos fatos e de sua probabilidade. Ela é, por assim dizer, o
efeito de uma expectativa cultural.
Para nós, no caso, é mais verossímil uma narrativa sem Dimenstein
chegando de helicóptero. Alguém
dirá: "Melhor assim, não estamos
aqui para gratificar nossos sonhos
de glória, mas para enxergar a feiúra do mundo".
Legal, mas pergunto: a chegada
dos "nossos" no cinema hollywoodiano é só um achado de marketing
para alegrar o público? Ou será que
corresponde à expectativa cultural
de que o homem comum se sinta
compelido a erguer a cabeça e encarar o que lhe parece errado?
O final hollywoodiano pode parecer inverossímil, feito para nos
seduzir com o devaneio de nosso
próprio heroísmo. Mas seu contrário talvez alimente uma cinismo
das belas almas, em que a indignação importa mais do que a ação.
Um olhar pretensamente mais
"maduro" e menos "alienado" por
finais felizes pode ser a armadilha
de uma disposição cultural em que
a indignação serve sobretudo para
inocentar: indignei-me, logo, fiz
minha parte. E os atos, cara pálida?
Cá entre nós: Inês teria gostado
caso, na ausência de Bruce Willis,
ao menos o helicóptero de Dimenstein chegasse a tempo.
ccalligari@uol.com.br
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