São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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"A sofisticação da Velha Guarda vem da pureza"

"Discípula" dos sambistas, Marisa Monte diz se esforçar para manter "relação pura com a criação, apesar de ser profissional'

"O que eu fiz é uma pontinha de um iceberg. Seria lindo se pudesse ser feito formalmente", afirma, sobre "O Mistério do Samba"


DA SUCURSAL DO RIO

Um dos momentos mais marcantes de "O Mistério do Samba" é quando Marisa Monte encontra músicas inéditas de Manacéa (1921-1995), ex-líder da Velha Guarda, na casa da viúva, dona Neném. Descoberta, preservação e divulgação do acervo desses compositores estão entre os temas que ela aborda na entrevista abaixo.

 

INSPIRAÇÃO
Estamos falando de pessoas que não viviam a música de forma profissional. Era uma atividade ligada ao prazer, à celebração, à preservação de valores, a enaltecer a escola. Alguns perceberam que compor podia gerar alguma renda, mas, quando isso aconteceu, foi de forma episódica. É uma arte mais ligada à inspiração do que à transpiração, porque eles transpiravam pintando paredes, na construção civil. [...] É uma das coisas intrigantes que o filme mostra: por não haver intenção profissional eles têm essa relação tão pura com a criação.

SOFISTICAÇÃO
A sofisticação deles vem da pureza, do contato direto com os sentimentos. Quanto mais você consegue ser fiel ao que está sentindo, para mais pessoas está falando. Todos nós vivemos temas como solidão, amor, abandono, o encontro de uma nova pessoa e a juventude que não se tem mais. A vivência deles é uma fonte de sabedoria. Sofisticação, para mim, é só isso. Não existe nada mais sofisticado do que sabedoria de vida.

TRISTEZA
Eles estão em contato com sentimentos intensos, o que é sempre muito inspirador. Mas nem todas as músicas são tristes. Qualquer emoção é válida [para os compositores da Velha Guarda], o que vier serve de combustível. É agradecer à dor, à tristeza, ao sofrimento, ver o lado positivo disso tudo. É transformar um sentimento que pode parecer inútil e infrutífero em beleza.

MEMÓRIA
Eles têm uma noção muito clara da importância da memória. E isso, num país tido como sem memória, é emocionante. Uma das funções da Velha Guarda é perpetuar as histórias, os compositores, os nomes. O que eu fiz é uma pontinha de um iceberg. Seria lindo se pudesse ser feito formalmente, por um instituto, uma equipe de pesquisadores, digitalizando todas as imagens e os cassetes, montando um banco de dados, e que isso pudesse ficar acessível. Tudo o que eu digitalizei devolvi às famílias. Mas é frágil. Como serão as famílias daqui a três ou quatro gerações? Eles sabem a importância do que fazem, mas não têm o domínio dos meios para fazê-lo.

SUCESSÃO
O universo da Velha Guarda é mais amplo do que as pessoas que a gente conhece como Velha Guarda. O Paulinho [da Viola] lembra que, quando freqüentava a quadra, esse universo era de umas 60 pessoas. Quando ele quis fazer o disco ["Portela - Passado de Glória", em 1970], selecionou uns 12. O formato que criou é o que eles chamam de Velha Guarda Show, uma representação da Velha Guarda toda. São pessoas que possam ajudar a manter essa memória, conheçam coisas antigas, tenham ligação com a história da escola, possam enriquecer o meio. É muito mais vivência do que idade. Em função do que viveu desde que nasceu, Serginho [Procópio, 40, que sucedeu o pai, Osmar do Cavaco, morto em 1999] vale por muitos que chegaram antes.

FUTURO
Espero que [a Velha Guarda] não acabe, que se perpetue. Mas é uma questão interna. Não me meto. É claro que é difícil ter peça de substituição. É difícil substituir um Manacéa, um Argemiro. Eles sabem. Mas as coisas se transformam.

PAPEL
Meu papel é o de discípula. Sou humilde aprendiz. O que eles têm a ensinar é muito para mim. A gente vê muita coisa de que gosta na vida, mas que pega na veia, como eles, é difícil. É tão bom estar viva e se sentir emocionada... Sou muito grata a eles por esse sentimento. Fico querendo aprender a manter a relação pura com a criação, e não perder isso, apesar de ser uma profissional. E o engraçado é que estou fazendo o meu DVD ["Infinito ao Meu Redor", que será lançado em setembro], que é o contrário do filme, pois é sobre a relação profissional com a música. São os bastidores, a ralação, durante dois anos [de lançamento dos CDs "Infinito Particular" e "Universo ao Meu Redor" e da turnê de show]. É a desglamourização total do meu trabalho. Não quero perder o frescor. Por isso, tenho o maior respeito pela qualidade do que eles criam. É exemplar.
(LUIZ FERNANDO VIANNA)



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