|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"A sofisticação da Velha Guarda vem da pureza"
"Discípula" dos sambistas, Marisa Monte diz se esforçar para
manter "relação pura com a criação, apesar de ser profissional'
"O que eu fiz é uma pontinha de um iceberg. Seria lindo se pudesse ser feito formalmente", afirma, sobre "O Mistério do Samba"
DA SUCURSAL DO RIO
Um dos momentos mais
marcantes de "O Mistério do
Samba" é quando Marisa Monte encontra músicas inéditas de
Manacéa (1921-1995), ex-líder
da Velha Guarda, na casa da
viúva, dona Neném. Descoberta, preservação e divulgação do
acervo desses compositores estão entre os temas que ela aborda na entrevista abaixo.
INSPIRAÇÃO
Estamos falando de pessoas
que não viviam a música de forma profissional. Era uma atividade ligada ao prazer, à celebração, à preservação de valores, a enaltecer a escola. Alguns
perceberam que compor podia
gerar alguma renda, mas, quando isso aconteceu, foi de forma
episódica. É uma arte mais ligada à inspiração do que à transpiração, porque eles transpiravam pintando paredes, na
construção civil. [...] É uma das
coisas intrigantes que o filme
mostra: por não haver intenção
profissional eles têm essa relação tão pura com a criação.
SOFISTICAÇÃO
A sofisticação deles vem da pureza, do contato direto com os
sentimentos. Quanto mais você
consegue ser fiel ao que está
sentindo, para mais pessoas está falando. Todos nós vivemos
temas como solidão, amor,
abandono, o encontro de uma
nova pessoa e a juventude que
não se tem mais. A vivência deles é uma fonte de sabedoria.
Sofisticação, para mim, é só isso. Não existe nada mais sofisticado do que sabedoria de vida.
TRISTEZA
Eles estão em contato com sentimentos intensos, o que é sempre muito inspirador. Mas nem
todas as músicas são tristes.
Qualquer emoção é válida [para
os compositores da Velha
Guarda], o que vier serve de
combustível. É agradecer à dor,
à tristeza, ao sofrimento, ver o
lado positivo disso tudo. É
transformar um sentimento
que pode parecer inútil e infrutífero em beleza.
MEMÓRIA
Eles têm uma noção muito clara da importância da memória.
E isso, num país tido como sem
memória, é emocionante. Uma
das funções da Velha Guarda é
perpetuar as histórias, os compositores, os nomes.
O que eu fiz é uma pontinha
de um iceberg. Seria lindo se
pudesse ser feito formalmente,
por um instituto, uma equipe
de pesquisadores, digitalizando
todas as imagens e os cassetes,
montando um banco de dados,
e que isso pudesse ficar acessível. Tudo o que eu digitalizei
devolvi às famílias. Mas é frágil.
Como serão as famílias daqui a
três ou quatro gerações? Eles
sabem a importância do que fazem, mas não têm o domínio
dos meios para fazê-lo.
SUCESSÃO
O universo da Velha Guarda é
mais amplo do que as pessoas
que a gente conhece como Velha Guarda. O Paulinho [da Viola] lembra que, quando freqüentava a quadra, esse universo era de umas 60 pessoas.
Quando ele quis fazer o disco
["Portela - Passado de Glória",
em 1970], selecionou uns 12. O
formato que criou é o que eles
chamam de Velha Guarda
Show, uma representação da
Velha Guarda toda. São pessoas
que possam ajudar a manter essa memória, conheçam coisas
antigas, tenham ligação com a
história da escola, possam enriquecer o meio. É muito mais vivência do que idade. Em função
do que viveu desde que nasceu,
Serginho [Procópio, 40, que sucedeu o pai, Osmar do Cavaco,
morto em 1999] vale por muitos que chegaram antes.
FUTURO
Espero que [a Velha Guarda]
não acabe, que se perpetue.
Mas é uma questão interna.
Não me meto. É claro que é difícil ter peça de substituição. É
difícil substituir um Manacéa,
um Argemiro. Eles sabem. Mas
as coisas se transformam.
PAPEL
Meu papel é o de discípula. Sou
humilde aprendiz. O que eles
têm a ensinar é muito para
mim. A gente vê muita coisa de
que gosta na vida, mas que pega
na veia, como eles, é difícil. É
tão bom estar viva e se sentir
emocionada... Sou muito grata
a eles por esse sentimento. Fico
querendo aprender a manter a
relação pura com a criação, e
não perder isso, apesar de ser
uma profissional. E o engraçado é que estou fazendo o meu
DVD ["Infinito ao Meu Redor",
que será lançado em setembro],
que é o contrário do filme, pois
é sobre a relação profissional
com a música. São os bastidores, a ralação, durante dois anos
[de lançamento dos CDs "Infinito Particular" e "Universo ao
Meu Redor" e da turnê de
show]. É a desglamourização
total do meu trabalho. Não quero perder o frescor. Por isso, tenho o maior respeito pela qualidade do que eles criam. É
exemplar.
(LUIZ FERNANDO VIANNA)
Texto Anterior: Humilde aprendiz Próximo Texto: Frases Índice
|