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Análise
"Preguiça criadora" gerou o mais original compositor brasileiro
Perfeccionista sem esforço, Caymmi compunha "devagarinho" e "aos pedacinhos"
CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
que chama a atenção
na obra de Dorival
Caymmi, se comparada a de outros compositores
brasileiros, é a sua relativamente pequena produção e o seu
grande percentual de "standards", isto é: de canções-modelo. Nesse aspecto, nem nosso
maior compositor, Tom Jobim,
o superou. À luz da informação
estética, seria o mais original,
pois o menos redundante.
Qualidade muita, quantidade
pouca. Foram pouco mais de
cem canções em cerca de 60
anos de atividade como compositor. Pudera. Uma ("João Valentão") levou nove para ser
acabada, outra ("Saudade da
Bahia") passou 12 na gaveta.
Perfeccionista sem obsessão e
sem esforço, Caymmi compunha "devagarinho" e "aos pedacinhos", como chegou a dizer.
A esse método correspondeu
uma atitude de descompromisso com o mercado e comprometimento só com o público.
Caymmi raramente compôs
por encomenda e sempre cantou menos pelas circunstanciais avaliações comerciais de
sua arte do que pela sua disposição. Quis e ganhou o bastante
para poder curtir o "dolce far
niente" de uma "vida de artista" (ou o ócio do ofício...).
Aliás, foi para tirá-lo da vadiagem que seu pai, o funcionário público Durval, neto de italiano, lhe arranjou seu primeiro emprego no jornal "O Imparcial", de Salvador, como auxiliar de escritório, aos 16.
Mas a convivência com a música começava já em casa -onde o pai tocava piano, violão e
bandolim, e a mãe cantava- e
prosseguia na rua, nos festejos
do povo baiano. Desse modo, da
primeira composição, uma toada sentimental intitulada "No
Sertão", de 1930, às primeiras
apresentações em rádio, em
1935, foi um passo. O salto ele
daria em 1939, já no Rio e com
uma coleção de canções sobre a
Bahia na bagagem.
Os trejeitos de Carmen
Com a sua "O que É que a
Baiana Tem?" na voz de Carmen Miranda, Caymmi entrou
em cena para não mais sair.
A associação, se foi determinante para a projeção nacional
dele, também o foi para a construção da imagem internacional dela -Caymmi lhe ensinou
os trejeitos que se tornaram inseparáveis da sua interpretação. Em 40, saía o seu primeiro
disco, com "O que É que a Baiana Tem?" e "A Preta do Acarajé", em duo com Carmen.
Data do mesmo ano, e com
outra cantora, Stella Maris, o
início de uma parceria que duraria de fato até que a morte os
separasse, e da qual resultaria a
outra parte da sua herança musical: os filhos Nana, Dori e Danilo Caymmi.
Costuma-se dividir a obra de
Caymmi em duas fases/faces
principais. Na primeira, tendo
como referente uma Bahia pré-industrial e idealizada, sobressaem as canções praieiras
-obras-primas como "O Mar"
e "O Vento". A segunda, "carioca" e urbana, põe em relevo os
sambas-canções em cujas harmonias se viu um prenúncio da
bossa nova -jóias tipo "Marina", "Só Louco", "Nem Eu" etc.
Há quem acrescente uma
terceira, definida pelo predomínio de canções com forte
acento afro-religioso. É quando
intensifica sua relação com o
candomblé, assumindo obrigações sócio-administrativas como Obá de Xangô do terreiro
Axé Ôpô Afonjá, em Salvador,
em 1969. Ele e seus grandes
amigos Jorge Amado e Carybé.
Na verdade, todas constituem expressões distintas de
uma mesma e sempre presente
baianidade. Até a chamada fase
carioca. Nesta, os casos -e descasos- amorosos são tratados
com uma doçura que quase não
se nota num compositor do
Rio. Quanto às dissonâncias
harmônicas, elas já estavam lá,
no violão do período marinho-soteropolitano; à época, diziam
que ele tocava errado: "Mas eu
sempre achei que havia beleza
fora do acorde perfeito".
Um baiano no Rio
Caymmi viveu em Salvador
só até os 24 anos, mas, como
disse Vinicius de Moraes, "é difícil encontrar alguém mais
baianamente dengoso que ele".
De fato, o Rio, onde chegou em
1938, foi a sua principal sede.
No Rio, Caymmi fez as mais
diversas amizades nos meios
artístico e jornalístico. Da esquerda à direita; dos padrinhos
de casamento Jorge Amado,
que o chamava de irmão caçula,
e Samuel Wainer, que o chamou para uma coluna sobre rádio no "Última Hora", nos anos
50, a Carlos Lacerda.
De Rubem Braga a Carlinhos
Guinle, com quem, segundo outro amigo, Fernando Lobo, a
parceria funcionava nessa base:
Dorival entrava com a música, e
Carlinhos, com o uísque...
Seu melhor intérprete
Foi gravado pelos maiores
intérpretes da MPB, de Elis Regina e Gal, que lhe dedicou um
álbum em 1976; de João Gilberto, que recriou três músicas
suas em plena bossa nova, a Gil
e Caetano. Nenhuma dessas
gravações, contudo, se compara ao próprio Caymmi se interpretando. Ele próprio era convencido disso. Não porque fosse vaidoso -coisa que ele, naturalmente, era. Mas porque tinha plena consciência de si.
Sua famosa e, segundo Amado, "criadora" preguiça inspirou a divulgação de histórias
folclóricas e a criação de anedotas gozadas. Durante um tempo, se contou muito esta: existiriam três ritmos na Bahia: o devagar, o muito devagar e o
Caymmi. Eu mesmo tive uma
prova de sua lentidão.
Em 1994, eu coordenava a
área de música do Museu da
Imagem e do Som de SP e quis
trazê-lo para um depoimento.
Conversávamos muito, toda semana, por telefone, mas na hora de decidir vir, ele sempre dava uma desculpa. Numa dessas,
chegou a me propor que eu ligasse para ele num dia para
marcarmos então o dia em que
eu ligaria de novo para marcarmos enfim o dia em que viria...
CARLOS RENNÓ é letrista, produtor e jornalista
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