São Paulo, terça-feira, 17 de agosto de 2010

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Nova York, ida e volta


Nova York não se comove com dramas metafísicos e continua uma projeção da nossa memória fílmica

1. VIAGEM PARA Nova York. O avião é a última expressão de civilidade. Em teoria, talvez o trem fosse concorrente sério. Mas os celulares arruinaram qualquer vantagem.
Em Portugal, viajo semanalmente entre Lisboa e Porto. Durante três horas, é o manicômio: ficamos a saber quem janta com quem, quem trabalha com quem, quem deseja o quê e quando. No dia em que os aviões permitirem o uso indiscriminado dos aparelhos, não sei que transporte restará. Talvez o cavalo.
2. Ou o barco, como os nossos antepassados. Seis horas de viagem entre Lisboa e Nova York e algures, a meio do Atlântico, faço uma pausa na leitura e pergunto como seria possível viajar há cem anos, com travessias de dias, ou meses, e nada para fazer a bordo. Os homens modernos deixaram de saber lidar com o tédio? Ou fomos apenas criando necessidades que os nossos antepassados desconheciam?
3. Nova York não se comove com dramas metafísicos e continua a mesma cidade de sempre: uma projeção da nossa memória fílmica, que encontra em cada canto ou recanto uma referência erudita qualquer.
O meu hotel fica junto à Rizzoli, no Upper West Side, e, ao passar pela entrada da livraria, recordo de imediato o filme "kitsch" dos anos 80 em que Robert de Niro e Meryl Streep iniciam romance adúltero naquele espaço. Dos restantes cenários, Central Park, Central Station, Quinta Avenida nem é preciso falar: os fantasmas todos da cinefilia passeiam impunemente pelos lugares.
4. Mesmo de férias, recebo telefonema de Lisboa para escrever texto (longo) sobre as próximas eleições presidenciais em Portugal.
Com ânimo canino, cumpro o serviço (durante a manhã) e, pelas 14h, saio para a rua, disposto a farejar livrarias várias que amigos me recomendaram. Duas delas fecharam nos últimos meses, o que atesta a velocidade com que a cidade cresce e se transforma.
Termino a tarde na Barnes & Noble da Quinta Avenida e recordo o filme "Nunca te Vi Sempre te Amei" (84 Charing Cross Road), em que a personagem de Anne Bancroft, uma leitora compulsiva, desenvolve relação livresca e à distância com um livreiro londrino (Anthony Hopkins, primoroso "comme d'habitude"). Ela em Nova York, ele em Londres, enviando-lhe os livros que Nova York não tem.
De fato. Excetuando a Strand, que é o maior sebo do mundo, as livrarias nova-iorquinas perdem em comparação com Londres. E nem sequer falo de autores ingleses; falo de nomes norte-americanos, publicados pela Library of America, como George Kaufman ou James Thurber. Sumidos.
5. Engraçadas essas comparações permanentes entre Londres e Nova York. Sou incapaz de me decidir por uma delas, mas é impossível não registrar mais uma diferença fundamental entre a Broadway e o West End: em Londres, é possível pedir um copo de vinho e levá-lo para dentro do teatro. Em Nova York, bebemos sofregamente ao intervalo e só garrafas de água são permitidas no espetáculo. Puritanismos.
6. Não se bebe durante a peça, bebe-se depois: janto no Benoit, um restaurante simpático na 55ª, onde se come (e se bebe) bem. As doses são "normais" pela primeira vez em vários dias. A quantidade de comida que os americanos jogam fora, suspeito, chegaria para acabar com os famintos de África. Um sanduíche do Carnegie Deli alimentaria uma tribo inteira. O vinho é um Cabernet Franc 2005, do Rubicon Estate de Francis Ford Coppola. O diretor tem filmado pouco. Agora percebo as razões. Boas razões.
7. Uma tarde no Guggenheim com a ala Mapplethorpe encerrada ao público (Deus existe!) e recordo uma conversa antiga com Anthony O'Hear, filósofo inglês que me dizia, com inteira razão, que a principal diferença entre a grande arte e a esmagadora maioria das brincadeiras conceituais dos nossos dias estava na noção de "inexaustibilidade".
A grande arte é aquela que existe e persiste em nós: uma experiência estética que somos humanamente incapazes de esgotar. Vemos Turner uma vez, duas, dez, cem e é como se fosse sempre a primeira vez.
Exatamente o contrário do que sucede com as brincadeiras conceituais: elas podem ser provocadoras, inovadoras, inteligentes. Interessam uma vez. Não interessam nenhuma outra vez.
8. E por falar em grande arte: regresso a Lisboa em voo noturno. Todos dormem. Menos eu. Caminho pelo avião silencioso e contemplo os rostos inertes dos passageiros. Um espetáculo digno de Hieronymus Bosch.

jpcoutinho@folha.com.br


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