São Paulo, Terça-feira, 17 de Agosto de 1999
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MEMÓRIA
O samba agoniza e também morre

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Invertendo Nelson Sargento, é dia de dizer que o samba agoniza e, às vezes, também morre. Este seu pedaço que vai agora com Carlos Cachaça é mais um daqueles que pouquíssima consideração recebeu em vida por parte da família MPB -de artistas a homens de gravadora-, para além do mero palavrório.
É verdade que ele era artista peculiar. Não era exatamente um cantor, e o quase solitário registro em LP "Carlos Cachaça" (de 76, recuperado em 95 num CD de capa adulterada pela Continental e já fora de catálogo de novo), de voz bêbada, deixa isso evidente.
Também não foi assim tão caudaloso -ou foi a previsibilidade dos intérpretes brasileiros que passou tal impressão. Só dois de seus sambas foram insistentemente gravados e regravados.
O mais deles é "Não Quero Mais Amar a Ninguém", vencedor, sob o nome "O Destino Não Quis", do desfile oficial de 1936 e gravado, logo em seguida, agora como "Não Quero Mais", por Aracy de Almeida e Zé Com Fome.
Esquecido por décadas, o samba voltou à tona na onda de revalorização dos sambistas de morro nos anos 60, ganhando releituras como a do LP "Mudando de Conversa" (68), com Cyro Monteiro, Nora Ney e Clementina de Jesus, a de Paulinho da Viola (73) ou a de Clementina de Jesus (76), num LP antológico em que a capa ostentava o garboso subtítulo "Convidado Especial: Carlos Cachaça".
A outra, "Alvorada no Morro", apareceu no monumental LP coletivo "Fala Mangueira!" (68), que reunia nada menos que Cartola, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Odete Amaral e o próprio Cachaça. Depois, foi retomada por Clara Nunes (em 72), Cartola (74), Zizi Possi (91)...
Coincidência ou não, seus dois sambas mais conhecidos têm co-autoria de Cartola (também colega pioneiro de Mangueira e marido de Zica, irmã de sua mulher, Menininha), "Não Quero Mais Amar a Ninguém" ainda com Zé da Zilda e "Alvorada no Morro", com Hermínio Bello de Carvalho.
Também em dupla com Cartola são temas mais ou menos populares como "Ciência e Arte" (que Gilberto Gil regravou em 96), "Tempos Idos" e "Quem Me Vê Sorrindo" (reeditadas, em 99, no CD "Só Cartola", com Elton Medeiros e Nelson Sargento).
De Cachaça só, o terreno é mais pantanoso, privativo de mangueirenses fanáticos. Destacam-se, aí, as interpretações furiosas de Clementina de Jesus para as sensacionais "Lacrimário" e "Itinerário", ou "Vingança", cantada por Beth Carvalho em 77.
É ocioso mencionar que a indústria mantém fora de catálogo quase tudo que foi citado aqui e que pouco se ouviu do sambista na década do axé e do pagode -a última notícia apareceu em 98, num CD independente de Delcio Carvalho, parceiro histórico de Ivone Lara, que compôs com ele "Caminho da Existência".
O que fica de Cachaça, por ora, é memória difusa -ou tornada óbvia por insistente nuns poucos temas-, restrita à marginalidade a que o samba de raiz anda novamente atirado, à espera quem sabe de nova renascença como a promovida nos 60 por Nara Leão.
Quem anda esquecido, assim, é tanto o fundador da Mangueira quanto o burilador de versos barrocos/rebuscados como os de "Crueldade": "Foste tu cruelmente/ a causa crescente do meu padecer/ me levaste ao fim/ hoje passas por mim/ fingindo não me ver". Cachaça já não padece mais, mas o samba sofre como nunca.


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