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MEMÓRIA
O samba agoniza e também morre
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
Invertendo Nelson Sargento, é
dia de dizer que o samba agoniza
e, às vezes, também morre. Este
seu pedaço que vai agora com
Carlos Cachaça é mais um daqueles que pouquíssima consideração recebeu em vida por parte da
família MPB -de artistas a homens de gravadora-, para além
do mero palavrório.
É verdade que ele era artista peculiar. Não era exatamente um
cantor, e o quase solitário registro
em LP "Carlos Cachaça" (de 76,
recuperado em 95 num CD de capa adulterada pela Continental e
já fora de catálogo de novo), de
voz bêbada, deixa isso evidente.
Também não foi assim tão caudaloso -ou foi a previsibilidade
dos intérpretes brasileiros que
passou tal impressão. Só dois de
seus sambas foram insistentemente gravados e regravados.
O mais deles é "Não Quero Mais
Amar a Ninguém", vencedor, sob
o nome "O Destino Não Quis", do
desfile oficial de 1936 e gravado,
logo em seguida, agora como
"Não Quero Mais", por Aracy de
Almeida e Zé Com Fome.
Esquecido por décadas, o samba voltou à tona na onda de revalorização dos sambistas de morro
nos anos 60, ganhando releituras
como a do LP "Mudando de Conversa" (68), com Cyro Monteiro,
Nora Ney e Clementina de Jesus, a
de Paulinho da Viola (73) ou a de
Clementina de Jesus (76), num LP
antológico em que a capa ostentava o garboso subtítulo "Convidado Especial: Carlos Cachaça".
A outra, "Alvorada no Morro",
apareceu no monumental LP coletivo "Fala Mangueira!" (68), que
reunia nada menos que Cartola,
Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Odete Amaral e o próprio Cachaça. Depois, foi retomada por Clara Nunes (em 72), Cartola (74), Zizi Possi (91)...
Coincidência ou não, seus dois
sambas mais conhecidos têm co-autoria de Cartola (também colega pioneiro de Mangueira e marido de Zica, irmã de sua mulher,
Menininha), "Não Quero Mais
Amar a Ninguém" ainda com Zé
da Zilda e "Alvorada no Morro",
com Hermínio Bello de Carvalho.
Também em dupla com Cartola
são temas mais ou menos populares como "Ciência e Arte" (que
Gilberto Gil regravou em 96),
"Tempos Idos" e "Quem Me Vê
Sorrindo" (reeditadas, em 99, no
CD "Só Cartola", com Elton Medeiros e Nelson Sargento).
De Cachaça só, o terreno é mais
pantanoso, privativo de mangueirenses fanáticos. Destacam-se, aí,
as interpretações furiosas de Clementina de Jesus para as sensacionais "Lacrimário" e "Itinerário", ou "Vingança", cantada por
Beth Carvalho em 77.
É ocioso mencionar que a indústria mantém fora de catálogo
quase tudo que foi citado aqui e
que pouco se ouviu do sambista
na década do axé e do pagode -a
última notícia apareceu em 98,
num CD independente de Delcio
Carvalho, parceiro histórico de
Ivone Lara, que compôs com ele
"Caminho da Existência".
O que fica de Cachaça, por ora, é
memória difusa -ou tornada
óbvia por insistente nuns poucos
temas-, restrita à marginalidade
a que o samba de raiz anda novamente atirado, à espera quem sabe de nova renascença como a
promovida nos 60 por Nara Leão.
Quem anda esquecido, assim, é
tanto o fundador da Mangueira
quanto o burilador de versos barrocos/rebuscados como os de
"Crueldade": "Foste tu cruelmente/ a causa crescente do meu padecer/ me levaste ao fim/ hoje
passas por mim/ fingindo não me
ver". Cachaça já não padece mais,
mas o samba sofre como nunca.
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