São Paulo, Sexta-feira, 17 de Setembro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY

Das cobranças de Jesus e de mim, pecador

Uma das pragas nas relações humanas, sobretudo nas profissionais, é a cobrança que todos se sentem no direito de fazer sobre aqueles que, por isso ou aquilo, preferem pensar com a própria cabeça e não com a cabeça genérica, fabricada pelos marqueteiros de diversos tamanhos, feitios e intenções. Como a praga é antiga, vai lá um exemplo evangélico.
Deu-se que Jesus foi visitar a família de seu amigo Lázaro, nos arredores de Betânia. As duas irmãs, Marta e Maria, o receberam como quiseram. A diligente Marta tratou de varrer o chão, providenciar a comida, agiu como a dona-de-casa que faz tudo para honrar o hóspede que chegou. Maria nada fez: ficou aos pés de Jesus, contemplando-o, amando-o com os olhos.
Marta reclamou, pediu que o mestre repreendesse a irmã, que fosse ajudá-la na faina doméstica. Sabemos a resposta de Jesus: disse que Maria ficara com a melhor parte.
Em outro episódio, quando Maria lavou os pés do Senhor e os perfumou com o óleo de nardo, alguns discípulos reclamaram daquele desperdício. Com o dinheiro daquele óleo podia ser aliviada a fome dos pobres que viviam pelas estradas empoeiradas da Judéia. Mais uma vez, Jesus ficou ao lado da politicamente incorreta. Era useiro e vezeiro em contrariar as verdades impostas pelos preconceitos da época.
Em tempo: um dos evangelistas diz que o reclamante foi Judas Iscariotes. De tanto cobrar os outros, Judas acabou vendendo seu mestre.
Pulando de Cristo para o cronista (e não falo apenas em meu nome, mas no de outros escribas), já estou farto de ser cobrado pelo que faço ou deixo de fazer. Lembro um episódio do remotíssimo ano de 1964.
Com o movimento militar daquele ano, comecei a escrever num jornal do Rio uma série crônicas furibundas (e bota furibundas nisso) contra o regime. Evidente que desagradei a muitos, mas agradei a outros -o que continuo a fazer com proposital frequência.
Recebia muitas cartas na ocasião, a maioria me incentivando a continuar na mesma linha. Até de Zola me xingaram. Acontece que, certa noite, fechado o jornal, fui com o Moniz Vianna, que era o maior crítico de cinema daquele tempo, ver um filme baseado num dos clássicos da literatura inglesa que mais admiro, "Tom Jones", de Fielding, autor que coloco logo abaixo de Swift no departamento do romance inglês.
Ao contrário do que esperava, gostei do filme, dando os devidos descontos, é claro. O humor de Fielding, como o de Swift, é intraduzível para as imagens -essas, sim, muito bonitas e lembrando com fidelidade as ilustrações de Hogarth para o famoso romance que em certo sentido criou a moderna prosa inglesa.
Tenho opinião formada a respeito de adaptações literárias para o cinema. São em geral péssimas. Numa lista de cem melhores romances da literatura universal, podem existir dois ou três casos de adaptações razoáveis. O resto é lixo cultural.
Pois o "Tom Jones" de Richardson é uma dessas exceções. Entusiasmado e com o Moniz Vianna me entusiasmando ao desespero, no dia seguinte escrevi sobre o filme com a mesma sinceridade com que vinha escrevendo sobre os desmandos e a truculência do movimento militar.
A crônica saiu numa terça-feira e, pela manhã, o Antero, contínuo da redação, ligou para minha casa avisando que o telefone não parava. Eram leitores reclamando da minha covardia, da minha traição. Com que então, o Brasil pegando fogo, eu perdia tempo e espaço falando de um filme passado numa Inglaterra distante e colorida?
Quanto eu teria recebido dos militares para tratar de outro assunto? Ou quanto o jornal teria ganho para impedir que eu continuasse a esculhambar o regime?
Para piorar a situação, na quarta-feira, dia de minha folga semanal, quem escrevia no mesmo espaço era o Octavio de Faria. A maioria dos leitores nunca havia percebido isso. As cobranças redobraram: então eu me vendera aos milicos, aos torturadores? Bem que eu nunca enganara a ninguém, todos sabiam a boa bisca reacionária que eu era etc. etc.
Por tudo isso, eu me vacinei contra essa espécie de reclamação. Aliás, nem foi preciso vacina alguma. Meu organismo já produz anticorpos suficientes para impedir esse contágio do "vai na onda" que geralmente predomina em todos os setores.
Não me lembro de ter respondido às cobranças naquela época. Continuei gostosamente na minha. Gosto de falar daquilo que penso e sinto, sou até pago para isso por quem de direito, pelas mesmas entidades (jornais e revistas) que pagam a todos os outros profissionais do ofício.
Evidente que levo em consideração os leitores, respeito suas opiniões e preferências. Mas não sou escravo deles nem delas. O mundo não virá abaixo no dia em que eu não tiver nenhum leitor. Tornando-me inútil, o mundo talvez seja melhor.



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