|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Das cobranças de Jesus e de mim, pecador
Uma das pragas nas relações
humanas, sobretudo nas profissionais, é a cobrança que todos se
sentem no direito de fazer sobre
aqueles que, por isso ou aquilo,
preferem pensar com a própria
cabeça e não com a cabeça genérica, fabricada pelos marqueteiros
de diversos tamanhos, feitios e intenções. Como a praga é antiga,
vai lá um exemplo evangélico.
Deu-se que Jesus foi visitar a família de seu amigo Lázaro, nos
arredores de Betânia. As duas irmãs, Marta e Maria, o receberam
como quiseram. A diligente Marta tratou de varrer o chão, providenciar a comida, agiu como a
dona-de-casa que faz tudo para
honrar o hóspede que chegou.
Maria nada fez: ficou aos pés de
Jesus, contemplando-o, amando-o com os olhos.
Marta reclamou, pediu que o
mestre repreendesse a irmã, que
fosse ajudá-la na faina doméstica.
Sabemos a resposta de Jesus: disse
que Maria ficara com a melhor
parte.
Em outro episódio, quando Maria lavou os pés do Senhor e os
perfumou com o óleo de nardo, alguns discípulos reclamaram daquele desperdício. Com o dinheiro
daquele óleo podia ser aliviada a
fome dos pobres que viviam pelas
estradas empoeiradas da Judéia.
Mais uma vez, Jesus ficou ao lado
da politicamente incorreta. Era
useiro e vezeiro em contrariar as
verdades impostas pelos preconceitos da época.
Em tempo: um dos evangelistas
diz que o reclamante foi Judas Iscariotes. De tanto cobrar os outros, Judas acabou vendendo seu
mestre.
Pulando de Cristo para o cronista (e não falo apenas em meu nome, mas no de outros escribas), já
estou farto de ser cobrado pelo
que faço ou deixo de fazer. Lembro um episódio do remotíssimo
ano de 1964.
Com o movimento militar daquele ano, comecei a escrever
num jornal do Rio uma série crônicas furibundas (e bota furibundas nisso) contra o regime. Evidente que desagradei a muitos,
mas agradei a outros -o que
continuo a fazer com proposital
frequência.
Recebia muitas cartas na ocasião, a maioria me incentivando a
continuar na mesma linha. Até de
Zola me xingaram. Acontece que,
certa noite, fechado o jornal, fui
com o Moniz Vianna, que era o
maior crítico de cinema daquele
tempo, ver um filme baseado num
dos clássicos da literatura inglesa
que mais admiro, "Tom Jones", de
Fielding, autor que coloco logo
abaixo de Swift no departamento
do romance inglês.
Ao contrário do que esperava,
gostei do filme, dando os devidos
descontos, é claro. O humor de
Fielding, como o de Swift, é intraduzível para as imagens -essas,
sim, muito bonitas e lembrando
com fidelidade as ilustrações de
Hogarth para o famoso romance
que em certo sentido criou a moderna prosa inglesa.
Tenho opinião formada a respeito de adaptações literárias para o cinema. São em geral péssimas. Numa lista de cem melhores
romances da literatura universal,
podem existir dois ou três casos de
adaptações razoáveis. O resto é lixo cultural.
Pois o "Tom Jones" de Richardson é uma dessas exceções. Entusiasmado e com o Moniz Vianna
me entusiasmando ao desespero,
no dia seguinte escrevi sobre o filme com a mesma sinceridade com
que vinha escrevendo sobre os
desmandos e a truculência do movimento militar.
A crônica saiu numa terça-feira
e, pela manhã, o Antero, contínuo
da redação, ligou para minha casa avisando que o telefone não
parava. Eram leitores reclamando da minha covardia, da minha
traição. Com que então, o Brasil
pegando fogo, eu perdia tempo e
espaço falando de um filme passado numa Inglaterra distante e colorida?
Quanto eu teria recebido dos
militares para tratar de outro assunto? Ou quanto o jornal teria
ganho para impedir que eu continuasse a esculhambar o regime?
Para piorar a situação, na quarta-feira, dia de minha folga semanal, quem escrevia no mesmo espaço era o Octavio de Faria. A
maioria dos leitores nunca havia
percebido isso. As cobranças redobraram: então eu me vendera aos
milicos, aos torturadores? Bem
que eu nunca enganara a ninguém, todos sabiam a boa bisca
reacionária que eu era etc. etc.
Por tudo isso, eu me vacinei
contra essa espécie de reclamação.
Aliás, nem foi preciso vacina alguma. Meu organismo já produz
anticorpos suficientes para impedir esse contágio do "vai na onda"
que geralmente predomina em todos os setores.
Não me lembro de ter respondido às cobranças naquela época.
Continuei gostosamente na minha. Gosto de falar daquilo que
penso e sinto, sou até pago para isso por quem de direito, pelas mesmas entidades (jornais e revistas)
que pagam a todos os outros profissionais do ofício.
Evidente que levo em consideração os leitores, respeito suas opiniões e preferências. Mas não sou
escravo deles nem delas. O mundo
não virá abaixo no dia em que eu
não tiver nenhum leitor. Tornando-me inútil, o mundo talvez seja
melhor.
Texto Anterior: Fotografia: Equipes desvendam 500 anos de Brasil Próximo Texto: Crítica: Frears se perde nas planícies americanas Índice
|