São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 2002

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"BABELLE HEUREUSE"

Na dança nada se perde, tudo se mistura

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

"Era uma vez uma ilha." Mas não era uma torre? O mito bíblico de Babel começa em versão marítima, nessa grande colagem dançada da companhia Montalvo-Hervieu. A confusão das linguagens, aqui, não é punição. Em "Babelle Heureuse" (literalmente "Babela Feliz"), que estreou no teatro Alfa no último dia 12, o caminho da alegria é também o da diversidade.
Várias manifestações de movimento -do balé clássico, passando por hip hop, afro, capoeira e contorcionismo- compõem a geografia do gesto. Mas a colagem não pára por aí: a dança pode, também, ser criada na alternância entre imagens tecnológicas, em 3D, e o corpo real. Como nos espetáculos anteriores da companhia, "Paradis" e "Le Jardin Io Io Ito Ito", já vistos no Brasil, "Babelle Heureuse" é uma homenagem ao cosmopolitismo, poliglota e multicultural.
As personagens em cena se comunicam com as imagens da tela ao fundo. Não só com eles mesmos, filmados, mas também com animais (coelho, tigre, cavalo). Atrás da cortina vermelha virtual, o vídeo abre um novo espaço -da fantasia, do imaginário- onde se fundem alegremente natureza e cultura.
Vocabulários muito diferentes da dança também dialogam de forma original. Cada um aparece só um pouco, dono do instante. Há, assim, uma multiplicidade de pequenas sequências. Que são também desafios: por exemplo, na cena em que a dança clássica-moderna (sobre as pontas) tem respostas afro. Que também serve para contrastar corpos e modos de dançar: enquanto uma bailarina é magra, musculosa e precisa, a outra é redonda, macia e sinuosa. Mas não há barreiras entre elas e as duas acabam dançando em total harmonia.
É da convivência de solos virtuosísticos com a dança harmônica de grupo que a integração geralmente se dá. Não se trata só de um jogo de combinações, mas sim de uma interrogação, muito bem-humorada, do que seria uma identidade hoje (em particular na Europa multicultural, mas, por extensão, em todo lugar do mundo globalizado). Para a companhia Montalvo-Hervieu, isso acontece na fronteira de várias culturas e no cruzamento delas, com as devidas críticas possíveis.
Há momentos em que, de modo irônico, o espetáculo critica nossa postura habitual diante do mundo. Exemplo: de peruca e laquê na mão, um bailarino interroga o que é mais importante -a camada de ozônio ou o cabelo?
A música ao vivo -canções tradicionais do Golfo Pérsico- intercala-se com música clássica gravada (Vivaldi e, como se lê no programa, "Jean-Sébastien" Bach). Os dois músicos, Saeid Shanbehzadeh e Habib Meftahboushehri, também fazem parte da dança e todos os que dançam ajudam a compor o som em cena. Os figurinos são roupas comuns de rua, que vão do terno à calça de malha, dando um caráter pessoal a cada indivíduo.
Com humor e ironia, a cia. vai trabalhando o que há de sombra e luz neste mundo. Mesmo naqueles momentos quando a sobreposição de linguagens parece esvaziar um pouco de sentido. É uma mistura feliz, que deixa um gosto bom de alegria na gente.


Babelle Heureuse    
Com: cia. Montalvo-Hervieu
Quando: hoje, no teatro Castro Alves, Salvador (pça. 2 de Julho, s/nš, tel: 0/xx/ 71/339-8000); qui. e sáb., no teatro Municipal do Rio (pça. Floriano, s/nš, tel: 0/xx/21/2262-3935)
Quanto: de R$ 20 a R$ 90 (Salvador); de R$ 10 a R$ 240 (Rio)




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