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RODAPÉ
Os despojos da revolta
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Mais de 15 anos depois da
grata surpresa de "Relato
de um Certo Oriente" (1989), confirmada por "Dois Irmãos"
(2000), "Cinzas do Norte", de Milton Hatoum, veio à luz cercado de
grande expectativa: a de uma escrita fina que burila, ao mesmo
tempo e com igual desenvoltura, a
intimidade da memória e do romance familiar e a novidade literária de uma matéria narrativa insuficientemente conhecida, a
Amazônia do pós-guerra. Não o
faz com arroubos experimentalistas -o que lhe vale narizes secretamente torcidos dos que não
crêem na possibilidade de atualização crítica do romance na tradição flaubertiana- nem tampouco com ímpeto oportunista, escritor "sem fronteira" em missão
não-governamental, denunciando a dilapidação da floresta em
perspectiva atraente à maré planetária das ONGs e à curiosidade
estrangeira.
Uma carta-testamento, último
vestígio de um amigo cuja revolta
o tempo engoliu, a memória de
um primeiro encontro entre dois
meninos, à margem de um cais, e
eis o leitor fisgado, convidado a
ingressar no labirinto de igarapés
e caminhos que conduzem de um
extremo a outro. A travessia coincide com o fim do banquete de sobras da opulência extrativista, a
vigarice empertigada das fortunas
consolidadas à sombra do poder
militar, as tímidas tentativas de
resistência ao arbítrio. A atenção
concentrada sobre o contínuo enfrentamento entre Mundo e seu
pai, Trajano Mattoso, naturezas
antípodas e inconciliáveis (o artista e o burguês), tal como testemunhadas por Lavo, o amigo órfão e
de poucas posses, coloca o romance muito distante do didatismo enciclopédico, a história reduzida a fichas de pesquisa, tão
comum na narrativa contemporânea.
Confiada ao advogado manauara em que Lavo se converteu, mas
entrecortada por uma longa carta
de seu tio Ran, espectador privilegiado e personagem secundário
da disputa familiar, a narração sabiamente estilhaçada do romance
encontra correspondência numa
multiplicação de espaços comunicantes. No âmbito local, mostra
a degradação da paisagem de Manaus e do interior amazônico, ao
longo dos anos 60 e 70, explorando a contigüidade contrastante
entre as vilas operárias e a suntuosidade dos palacetes, exibindo o
declínio da opulenta Vila Amazônia, em Parintins, orgulho do pai
e horror de Mundo. Fora dele, expande os círculos do inconformismo do rapaz, realizando a vocação prefigurada no apelido, na
fuga em direção à cena artística de
uma Berlim e uma Londres reviradas pelas revoluções sexual e estudantil, ou ao Rio de Janeiro, refúgio falsamente idílico em que
mãe infeliz dá vazão a seus impulsos de consumo e foge do marido
tirânico.
Na imensidão da floresta, o custo da construção dos impérios
econômicos, recentes e mudando
de mãos em ritmo vertiginoso, inclui uma relação de promíscua
cordialidade, mediada pela violência e pela exploração, das elites
com os caboclos ribeirinhos. No
romance, em terra de lei recente e
em tempos de exceção, a submissão pela força ou cooptação pelo
favor quebram a fibra moral de alto a baixo, não deixando espaço
para simpatias maniqueístas e
dissolvendo as boas intenções.
Tio Ran, caboclo inventivo, que
foge às rédeas do trabalho formal,
acaba traficando peixes ornamentais; Arana, artista com fumos de marginalidade, mergulhado na matéria local, torna-se um
engravatado lambe-botas do poder, engrupindo turistas e desenhando caros móveis de mogno.
A recusa, inflexível, à "obediência estúpida" leva Mundo à dissolução, enquanto seu amigo de infância afunda na morna mediocridade da rotina. A discrição eficaz com que Milton Hatoum
compõe estes elementos, em que
os despojos de sonhos privados
de grandeza e vida política travada se revertem em amarga decepção, é notável. Em "Cinzas do
Norte", os dados da cultura local
nunca são ornamentos artificiosos, mas se deixam apreender a
partir de uma dimensão universal, relativizadora, feridas no narrador que reafirmam o seu estilo
próprio e oferecem, em narrativa
envolvente, um quadro vivo e
contraditório da nossa história recente.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Cinzas do Norte
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (312 págs.)
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