São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2005

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LITERATURA

Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, lança seu "Discurso sobre o Capim", com seleção de 11 contos adultos

Editor troca de lado e estréia nas letras

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Luiz Schwarcz começou a escrever profissionalmente por acaso. Foi uma série de coincidências que o levou a este "Discurso sobre o Capim", título da estréia no mundo da prosa adulta do editor de livros vivo provavelmente mais conhecido do Brasil. São 11 contos que fazem tabela entre a ficção e a memória como os camisas 7 e 9 do esporte que o autor adora. A Companhia das Letras, a empresa da qual ele é fundador e um dos proprietários, distribui a obra nas livrarias nesta segunda.
Mas é o assunto "coincidência", não o futebol, que começa a conversa do repórter com Schwarcz na sala de sua casa, no Jardim Europa, em São Paulo, numa manhã gelada da última semana. O ambiente dá vista para um jardim, que abriga pássaros de passagem, dois golden retrievers residentes (Bartholomeu, 8, pai, e Theodoro, 5, filho) e uma galinha-d'angola. O editor (ele prefere "leitor profissional") tem um sítio em São Bento do Sapucaí, no interior de São Paulo, e queria trazer para a casa paulistana um representante da espécie penada. Os cachorrões a devorariam, o plano foi abortado.
Até que um dia uma galinha -d'angola- veio de algum lugar e entrou. Mora lá, intacta.
Começa o bate-bola. Por que agora, aos 49 anos, 29 como editor, quase 20 à frente da empresa que fundou, Schwarcz resolveu mudar de lado no balcão literário? Logo ele, que recebe em casa os originais de Rubem Fonseca, Chico Buarque, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, a nata da literatura brasileira, e também estrangeiros, de Alberto Manguel a Tomás Eloy Martínez, para dar conselhos -e, melhor, ser ouvido?
"Em 1999, passei seis meses escrevendo um texto sobre a vida dos meus pais para meus filhos", Júlia, 24, hoje editora como o pai, e Pedro, 20, poeta e aspirante a ator, "pois queria que eles soubessem como foi a vida de seus avós", diz. A mulher, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, leu e disse: "Isso dá um livro pela Companhia das Letrinhas", de literatura infantil.
Ele começou a escrever outros contos para acompanhar o primeiro. Aquele virou o livro "Minha Vida de Goleiro", lançado no mesmo ano. É o ponto zero deste "Discurso sobre o Capim".
Os outros contos vieram pousar em seu computador, como a insistente galinha-d'angola. Vício de editor, ele lembra primeiro dos que foram cortados -brinca que seu livro de memórias se chamaria provavelmente "Letras que Cortei". Esta frase, aliás, fechava o livro que ele lança agora -mas foi cortada. Fala também de um texto que encerraria "Capim" explicando que os textos que o leitor acabou de ver na verdade eram trechos de contos e romances cortados por um editor criterioso. Um metaconto, que também não sobreviveu à faca impiedosa.
Os que sobreviveram foram 11, a seleção escalada, que vai do preciso "Sétimo Andar" a "Livro de Memórias", uma biografia ficcional, passando pelo pungente "Acapulco", que inspira a foto da capa e é de longe o mais bem escrito. Aqui, Schwarcz conta com liberdade poética a história dos avós maternos entremeada pela história de Johnny Weissmuller (1904-1984), o eterno Tarzan.
O paralelo que traça entre a tentativa do ator, já envelhecido e na penúria, de resgatar sua memória ao reviver um personagem de ficção e as tentativas que Schwarcz faz de recuperar a memória cada vez mais falha da avó ao folhear álbuns de fotos em suas visitas ao hospital em que ela se encontra de certa maneira resumem o livro.
Outro conto, "Doutor", é ácido e, no limite, confessional. Um filho de um mestre-de-obras, encanador e pedreiro quer ser médico. Ridicularizado pelo pai, cresce e se especializa em usar o auscultador para encontrar canos de esgoto rompidos. Eis aí a perfeita metáfora do editor: o sujeito que vê a casa pronta, mas é capaz de encontrar a merda que passa por baixo -e cortá-la. Joio e trigo etc.

Editar o editor
Por falar nisso, quem editou o editor? A princípio, ele teve pudor de entregar seu livro à sua própria empresa, mas achou menos hipócrita do que mandar para outra casa. Deram sugestões Rubem Fonseca, Patrícia Melo e Tomás Eloy Martínez. Quem o editou foi sua mulher, sua filha e a editora principal da Companhia, Maria Emília Bender. Ele aceitou as sugestões, algumas resignado.
Tímido, introvertido, fala baixa que contrasta com a estatura de jogador de basquete, não percebe nenhuma influência óbvia nos escritos. Instado a dizer, concede que a principal influência vem do cinema, não da literatura. É do cineasta François Truffaut (1932-1984), que "escrevia seus roteiros como se fossem peças literárias".
Batiza o livro uma frase do último conto. Nele, um empresário bem-sucedido se emociona numa homenagem tola e começa a descrever o primeiro quadro que comprou, uma marinha singela com pequenas manchas de capim fora de lugar, até perder a voz. Schwarcz levanta-se e mostra o quadro. É um Pancetti pendurado à nossa frente. Ele os coleciona. Tira um outro da parede e mostra o verso da obra. Está escrito, à tinta: "Campos do Jordão, 1949 - Stálin falou ao mundo!". O pintor autodidata brasileiro (1902-1958) revelava sua faceta esquerdista.
O repórter pede para ver o verso do quadro que inspirou o conto e que serve, discretamente, de fundo da foto do autor na orelha do livro, uma "inside joke". A tela é retirada da parede e virada: "16.6.56". Luiz Schwarcz, que nunca tinha atentado para a data da marinha, arregala os olhos: "Eu nasci neste mês e neste ano". (Nem "Letras que Cortei" nem "Livro de Memórias" nem "Discurso sobre o Capim": se um dia fosse escrita -não vai, diz ele-, sua biografia deveria se chamar "O Livro das Coincidências".)
Schwarcz encerra "Capim" com os agradecimentos, abertos com três epígrafes: "Escrever é cortar" (Marques Rebelo), "Escrever é cortar palavras" (Ernest Hemingway) e "Escrever é a arte de cortar palavras" (Carlos Drummond de Andrade). Mas é a epígrafe do livro mesmo, do escritor David Grossman, que revela, a um tempo, a insegurança e a intenção do autor estreante. "Se eu tivesse de escolher entre a felicidade e cantar bem... não tenho a menor dúvida do que escolheria." O que escolheria ele próprio? A felicidade (escrever) ou cantar bem (editar)?
A escolha pode esperar. Luiz Schwarcz é daqueles raros multitalentos. Seu livro de estréia é... Numa frase, imune a cortes? Gol.


Discurso sobre o Capim
Autor:
Luiz Schwarcz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (120 págs.)
Quando: lançamento na segunda-feira, às 19h30, na livraria Siciliano do shopping Pátio Higienópolis (av. Higienópolis, 618, piso Higienópolis, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3823-2669)


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