São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERREIRA GULLAR

Somos todos irmãos


A solução para o problema da desigualdade social é precisamente a educação

PARTICIPO DA preocupação de que se provoque o surgimento do ódio racial no Brasil. Esse ódio, felizmente, não existe, muito embora ainda não estejamos livres do preconceito racial, que existe e deve ser rechaçado, onde e quando se manifeste, conforme, aliás, prevê a legislação brasileira.
Abordo esse problema em razão do livro "Não Somos Racistas", que Ali Kamel acaba de publicar, onde o examina com seriedade e lucidez. O assunto, evidentemente delicado e polêmico, exige ser tratado com isenção, o que o autor, no meu entender, consegue.
Lendo-o, deduzi que ninguém, no Brasil, está pregando abertamente o conflito racial. Não obstante, a defesa de certas teses sociológicas, surgidas na década de 1950 e que visavam desfazer o "mito da democracia racial brasileira", lançaram as sementes desse possível conflito.
Os defensores daquelas teses afirmavam que a referida "democracia racial" fora inventada para encobrir o racismo, que seria a verdadeira causa da desigualdade social entre negros e brancos. Tal desigualdade não podia ser explicada, afirmam eles, apenas pela pobreza dos negros e pardos, pois tinham um fundo racial. Esse racismo, segundo eles, por ser disfarçado, seria pior que o dos brancos norte-americanos.
Já ouvi afirmações semelhantes e, em resposta, lembrei que a luta dos negros norte-americanos, durante os anos 60 e 70, que obteve importantes vitórias contra o racismo, na verdade, o que conseguiu foi eliminar discriminações que os negros brasileiros desconheciam, como não poder freqüentar os mesmos restaurantes que os brancos, não poder usar os mesmos banheiros nem estudar nos mesmos colégios. Quantos dos meus colegas de escola eram negros e mulatos! Se o racismo explícito e arrogante é melhor que o disfarçado, então de nada valeram as vitórias dos companheiros de Martin Luther King. Teria sido melhor, então, manter as discriminações de antes? Quem advogava teses como essas deveria entender que, se o racismo que está dentro de alguém não se manifesta em discriminações e ofensas, só serve para envenenar quem o traz consigo.
E sabem por que o racismo disfarçado, segundo eles, é pior? Porque impede o negro de lutar por seus direitos. Mas, se o que importa são os direitos e os negros brasileiros já gozavam de mais direitos que os seus irmãos norte-americanos, custa aceitar que o racismo daqui fosse pior que o de lá.
Torna-se então evidente que o objetivo daquelas teses era provocar o conflito entre negros e brancos, sob a alegação de que é o preconceito racial que impede a ascensão social dos negros, e não a pobreza. Logo, o inimigo do negro é o branco.
Conforme demonstra Ali Kamel, essas teses fizeram a cabeça de muita gente, contribuindo para que o nosso ideal de nação miscigenada e tolerante vá sendo substituído por uma suposta nação bicolor, na qual os brancos oprimem os negros. Procura-se de todas as maneiras impor essa visão ao país, muito embora os dados objetivos demonstrem o contrário.
Para comprovar que os brancos brasileiros oprimem os negros, usa-se o exemplo de que negros e pardos ganham a metade do salário dos brancos, ainda que tenham o mesmo nível educacional. Ali Kamel argumenta, porém, que ter o mesmo diploma não significa ter o mesmo nível de conhecimento nem o mesmo preparo; se os brancos estudaram em colégios bons e os negros em colégios péssimos -e é o que acontece- aqueles estarão mais aptos a exercer determinadas funções.
A causa da desigualdade salarial não se deve, portanto, ao racismo, mas à diferença na formação educacional. Segundo as mesmas estatísticas, os amarelos ganham o dobro dos brancos (7,4 salários mínimos contra 3,8), e a razão disso é que eles estudam em média 10,7 anos, enquanto os brancos estudam apenas 8,4 anos. Deve-se deduzir daí que os amarelos oprimem os brancos no Brasil? A conclusão certa é que ganha mais quem estuda mais. Eis por que a solução para o problema da desigualdade social é precisamente a educação, isto é, oferecer aos brasileiros pobres, sejam negros, mulatos ou brancos, ensino de qualidade.
O conceito de nação mestiça é um entrave a quem deseja o conflito racial. Por isso, embora os negros sejam apenas 5,6% da população brasileira, diz-se que os pardos, que somam 42%, também são negros e, assim, tenta-se ocultar o elevado grau de mestiçagem que nos caracteriza como povo. É uma pena.
O livro de Ali Kamel deve ser lido e refletido com a mesma isenção com que foi escrito.


Texto Anterior: Novelas da semana
Próximo Texto: Música: Maria Rita se apresenta de graça em Santo André
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.