São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2008

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Análise/teatro

Incansável, Zé Celso é o sol do universo Uzyna Uzona

Fundador do Oficina e seu coro desenvolveram um modelo próprio de encenação

Celso em "Mistérios Gozosos a Moda de Ópera" (94), de Oswald


LUIZ FERNANDO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Teatro Oficina é uma obra coletiva, de artistas de várias gerações que nos últimos 50 anos somaram esforços e talentos para consolidar o mais importante grupo de teatro do país. Mesmo assim, cada um dos que colaboraram nessa trajetória reconhece o papel solar de José Celso Martinez Corrêa nesse cosmo de criação teatral, cinemática, informática e política que se tornou a atual Uzyna Uzona.
Há muitas histórias do Oficina. Histórias oficiais, histórias reais, a história de cada um que passou por ali. Uma possível narrativa é opor à trajetória de Zé Celso -dramaturgo que se torna encenador e ator e compositor e tribuno- a do coro, surgido em "Roda Viva" e base da prolífica terceira vida do grupo (1994-2008). Nesse cruzamento de poética pessoal com circunstâncias históricas, e com aqueles que nelas se fizeram presentes na forma de vários e sucessivos coros, explicita-se a potência estética que até hoje encanta e sobressalta platéias no espaço da rua Jaceguai, no Bexiga, em São Paulo.

As três faces de Zé Celso
No começo, fim dos anos 50, há um dramaturgo tímido que emerge em um grupo de estudantes como encenador, aprende rápido com mestres como Eugênio Kusnet, estuda referências fundamentais do teatro no século 20 como Stanislavski e Brecht e chega a montar espetáculos lendários, como "Pequenos Burgueses" e "Selva das Cidades". Em paralelo, há o brasileiro do interior, formado pela rádio nacional e por suas cantoras maravilhosas, que flertou na juventude com o integralismo e, ao descobrir Oswald de Andrade, "estrela de absinto" de uma vida inteira, encenará o antológico "Rei da Vela". Há ainda o advogado, polemista nato, envolvido na luta política e que, como muitos de sua geração, vai romper nos anos 60 com a cultura e os modos de vida burgueses.
Com o sucesso econômico e a consagração da companhia por público e crítica, o Oficina equilibra-se no confronto entre os atores antigos, profissionais, e o coro novo, da contracultura.
A tomada do poder pelo coro, no início dos anos 70, leva à radicalização de "Gracias Señor", quando dizer "teatro" significará dizer "te ato". Juntos e perseguidos pela ditadura militar, Zé e coro passam a viajar pelo Brasil e pelo exterior, tanto geográfica como metaforicamente, em estados alterados de consciência, e a realizar o projeto de tornar a arte vida. Nessas alturas, e lonjuras, o Oficina sofre uma diáspora que espalha reverberações pelo globo e parece encerrar sua história.
Quis o destino que, com a poeira baixada e um novo teatro-rua construído, se iniciasse um novo e frutuoso ciclo. Agora, Zé e coro estão recompostos em um sistema de criação cujos procedimentos vão se engendrando no processo. Esse novo modo de produzir espetáculos é uma invenção coletiva fundada na relação polar entre encenador e coro. Nos exemplos mais notáveis -"Cacilda!", "Bacantes" e "Sertões" (uma pentalogia)-, Zé, além de compor a trama e traçar em versos as partes faladas e cantadas, escreve a encenação em rubricas sob medida para o espaço de Lina Bardi. Para materializar tudo isso, conta com a energia irrestrita de um coro disponível a todos os desafios.

O novo musical brasileiro
Ao longo das 19 produções realizadas desde 1994, a apropriação pelo coletivo dessas indicações prévias vem definindo conceitos originais de cenotécnica, cenografia e iluminação.
Mais importante, na parceria com diversos músicos, vem se instaurando ali um padrão de musical popular brasileiro. No contraponto da Broadway, que se avizinha e o ameaça, o Oficina opera com tecnologia nacional, know-how emanado das tradições brasileiras do teatro de revista e do Carnaval, mas também imantado pela bossa nova e pelo tropicalismo.
Se não fosse pela longevidade e pela história repleta de façanhas, ter inventado um modo próprio de fazer teatro já deveria valer a esse coletivo e a seu mentor a condição de artistas referenciais na cena contemporânea. A questão é pensar se esse modelo cristalizado resistiria à ausência de um de seus pólos operadores. Provavelmente não. Seria como separar João Gilberto de seu violão.


LUIZ FERNANDO RAMOS é professor de teoria do teatro da ECA-USP. Coordena o Grupo de investigação do Desempenho Espetacular e o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP.


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