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NELSON ASCHER
A morte do intelectual
As mães e avós de antanho tinham razão: mimar crianças as estraga. E mimá-las demais
as estraga absolutamente. Como
o nicho ecológico da correção política -seu berçário e asilo- é,
do jardim de infância às universidades, o sistema educacional, é
nele também que brotou e se
enraizou a revolta contra tais
constatações milenarmente testadas e comprovadas.
O processo educativo, previamente considerado uma catequização de selvagens, uma domesticação de feras perigosas, transformou-se hoje na extensão do aleitamento materno aos adolescentes que, por seu turno, mantêm-se
oficialmente nessa faixa etária
deleitosa e dilatável até quase
vésperas da aposentadoria precoce.
Nos países ricos, onde a praga
em questão assumiu dimensões
pandêmicas, mestres e educadores vêem como um dever central
não humilhar o corpo discente,
dever que, entendido no sentido
amplo, equivale a não lhe arranhar nem a epiderme da auto-estima, por exemplo, apontando
que se cometeu um erro de tabuada aqui, de concordância verbal
ali.
Evidentemente repreender um
estudante ou puni-lo pelo que
quer que seja está fora de questão,
mas, ademais, tampouco é lícito,
segundo os mestres e educadores
acima, conceder recompensas diferenciadas a quem alcance resultados diferentes. A igualdade de
resultados tornou-se obrigatória.
Todo bebê, púbere, adolescente,
jovem ou hippie grisalho, tem o
direito inato e perpétuo a ser o
primeiro da classe, assim como as
garotas de qualquer idade, mesmo antes do spa, da academia ou
da plástica, conquistaram o direito irrevogável a serem top models,
já que todas, graças a alguma divindade igualitária, são naturalmente lindas. E quem discorde é
um porco machista ou, pior, pecado dos pecados, culturalmente insensível.
Uma das razões disso é que, de
tantas instituições criadas ou
consolidadas durante a modernidade, a única nunca sistematicamente contestada ou sequer questionada é o sistema educacional.
Às vezes talvez possa até sê-lo neste ou naquele detalhe contingente, mas, em sua essência, jamais.
A educação, sobretudo se pública, universal e gratuita, passou a
ser tomada como um bem supremo -e a tal ponto que a primeira
(e última) linha de defesa a que
recorrem os apologistas de tiranias estatizantes se resume em
afirmar que, não obstante a falta
de alternância e alternativas no
poder, um ou outro campo de trabalhos forçados, o paredão ocasional, elas se redimem oferecendo de graça escolas e hospitais aos
súditos. Que seus professores sejam amiúde semi-analfabetos e
seus médicos, aos quais chega
apenas quem sobreviva às filas de
espera ou disponha de amigos
simpáticos e de bolsos fundos, tenham uma competência questionável, bom, tais minúcias em nada afetam a santidade das intenções de base.
No entretempo, parcelas crescentes do ensino vêm sendo colonizadas pelo conceito de "educação". A meta do ensino consiste
em transmitir aos alunos tanto
um conjunto de informações úteis
como os pré-requisitos metodológicos que lhes permitirão, de início, assimilá-las e, em seguida,
saírem por conta própria em busca de outras.
Quanto à educação, esta apresenta metas ambiciosas como, em
gerações anteriores, a formação
de patriotas leais, depois a de cidadãos exemplares e, agora, a de
seres humanos que pensem o que
convém pensar, nem um pouquinho aquém, nem um pouquinho
além e, principalmente, de forma
alguma, algo distinto ou contrário. Para que martelar a regra de
três na cabeça de um coitado
quando o prioritário é dotá-lo de
uma "consciência social", levá-lo
a apoiar boas causas, militar por
um mundo solidário, defender o
verde, não comer alimentos
transgênicos, votar certo nas eleições e plebiscitos? Para que perder
tempo com discussões se, através
de intérpretes autorizados e diplomados, os fatos sempre falam
por si sós?
Mais relevantes, porém, do que
razões ou causas são as conseqüências do paradigma educacional, das quais, embora haja uma
infinidade, a que no momento me
interessa é a morte não da intelectualidade, uma categoria que
prolifera sem cessar, mas, sim, na
acepção que, da Renascença até a
Primeira Guerra, os séculos deram ao termo, a do intelectual.
Se os intelectuais outrora eram,
entre outras coisas, indivíduos
que "diziam a verdade na cara do
poder", eles se destacavam igualmente por deduzir qual o poder
que, em cada circunstância, cabia
desafiar, pois não raro se tratava
daquele controlado menos pelos
governos do que por seus pares.
Eles desempenhavam o papel voluntário de, defendendo opiniões
antipáticas, insurgirem-se contra
as unanimidades aparentemente
democráticas da intelectualidade
e da opinião pública.
Não é de hoje que se confundir
no rebanho de colegas e, repetindo o que a maioria quer ouvir,
bajular a platéia rendem pontos,
afeto e sinecuras. Se bem que os
antigos intelectuais fossem tão
humanos quanto o resto da espécie, seu afã de, eclipsando a prudência e o corporativismo, fazer
perguntas inconvenientes constituía a pedra angular do mercado
livre de idéias.
O Leviatã educacional e a intelectualidade seguem, para abusar
da expressão imortal de Noam
Chomsky, se especializando na
manufatura do consenso. Acha-se atualmente em toda parte, nas
escolas, na academia, entre artistas, nas publicações mais diversas, um conformismo que antes
somente regimes totalitários pareciam capazes de instaurar. E os
instrumentos com os quais se
atingiu este sucesso suicida, em
vez do cárcere ou da sala de tortura, foram a abolição da competitividade, a premiação da inapetência, a desconfiança em face do
individualismo e o desestímulo à
curiosidade.
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