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Última Moda
ALCINO LEITE NETO - ultima.moda@grupofolha.com.br
Relações perigosas
"Gomorra", que passa na Mostra Internacional de Cinema, revela os laços da moda italiana com o crime organizado
Uma nuvem negra paira sobre a moda italiana depois das
denúncias feitas pelo escritor e
jornalista Roberto Saviano no
livro "Gomorra", uma reportagem bombástica sobre a Camorra, a gigantesca organização criminosa baseada na região de Nápoles.
As relações perigosas da moda com o crime também ocupam lugar central no filme "Gomorra", inspirado no livro, um
dos programas incontornáveis
da Mostra Internacional de Cinema (hoje o filme passa às 18h,
na Sala Cinemateca).
Dirigido por Matteo Garrone, "Gomorra" recebeu o Grande Prêmio do Júri do Festival
de Cannes deste ano e, com
suas imagens fortes e urgentes,
trouxe um novo sopro de vida
ao declinante cinema italiano.
Concorre a uma vaga no Oscar
de filme estrangeiro em 2009.
O filme transforma em ficção
episódios relatados na extensa
reportagem de Saviano, lançada em 2006 e que já vendeu
mais de 1 milhão de cópias em
40 países. O filme deve estrear
em dezembro, acompanhado
do lançamento do livro. Além
de sua relevância jornalística, a
obra tem valor literário: é um
rebento contemporâneo da escola neo-realista italiana.
Saviano escreveu o livro entre 2004 e 2005, a partir de investigações feitas em bairros
perigosos como Scampia e Secondigliano, onde ele foi viver e
trabalhar. Os relatos são impressionantes -por revelarem
a extensão do poder da Camorra e também a crueldade dos
seus crimes. Hoje com 29 anos,
o autor anda em carro blindado
e vive sob proteção policial,
após receber ameaças da organização, que anunciou pretender matá-lo até o Natal.
No livro, a fantasia glamourosa da moda italiana cai por
terra logo nas primeiras páginas. Ele faz uma denúncia minuciosa sobre a maneira como
grifes de prestígio mundial, a
fim de minimizar custos, produziram suas roupas no sul da
Itália em ateliês terceirizados,
que estão sob o domínio da Camorra, repletos de imigrantes
ilegais e gente subempregada.
Além de controlar o tráfico
de drogas, se imiscuir na produção de alimentos e possuir
um império imobiliário e de
construção, a Camorra -conta
Saviano- também manda no
contrabando de calçados, tecidos e outros produtos que
aportam da Ásia no disputado
porto de Nápoles.
Silêncio das grifes
Os clãs camorristas ainda estão por trás de numerosas fábricas de confecção da região e
são donos de lojas de roupas
nas principais cidades do mundo, inclusive no Brasil, onde
vendem produtos pirateados
de marcas famosas.
Estas, por sua vez, fizeram
vista grossa da pirataria que,
paradoxalmente, teria contribuído para tornar a moda italiana conhecida no mundo.
Escreve Saviano: "Se quase
ninguém vestir as roupas dos
grandes costureiros, se elas só
forem vistas no corpo de modelos anoréxicas durante a temporada de desfiles, o mercado
se apaga lentamente e o prestígio diminui também. Os ateliês
napolitanos fabricavam roupas
ilícitas em tamanhos que as grifes não produziam, por razões
de imagem".
Segundo Saviano, as grandes
grifes só começaram a protestar contra a ingerência do crime organizado nos negócios da
moda depois que esta foi revelada pela Antimafia -comissão
parlamentar que investiga a
ação mafiosa na Itália.
Denunciar antes significaria
para as grifes perder a mão-de-obra barata e o acesso às fábricas da região napolitana, sem
falar nos entraves à distribuição das roupas que a Camorra
criaria para as marcas.
O livro cita nominalmente as
grifes Valentino, Gianfranco
Ferré, Versace e Armani.
A relação ilícita da moda com
o crime é um dos fios condutores do filme "Gomorra", feito
de uma multiplicidade de histórias que tentam dar conta das
várias implicações da Camorra
na vida napolitana e italiana.
Logo no início, o filme mostra a elegante executiva de uma
grife fazendo o "leilão" de uma
encomenda de trabalho entre
os pequenos ateliês de costura
napolitanos -subservientes à
Camorra. Aquele que oferece o
preço mais baixo de confecção
leva a encomenda.
No meio da bandalheira, surge um dos personagens mais
patéticos do filme, Pasquale, o
costureiro-chefe de uma confecção (e, no livro, uma fonte
jornalística de Saviano). Apesar
de ser o responsável pela feitura de belos vestidos das grifes
numa pequena fábrica, seu trabalho é mal pago - 600 por
mês (cerca de R$ 1.750)- e
pouco reconhecido.
Pasquale decide, então, enfrentar todos os riscos e "vender" seus conhecimentos para
um clã chinês que atua em Nápoles, ensinando a arte da alta-costura para centenas de imigrantes orientais. Na fábrica
chinesa, além de receber um
bom dinheiro, ele é chamado
de "maestro" e ganha uma salva de palmas.
As súbitas honrarias não são
suficientes para consolá-lo da
falta de reconhecimento por
seu trabalho. Quando Pasquale
assiste na TV à atriz Scarlett
Johansson (no livro, Angelina
Jolie) chegando à entrega do
Oscar com a roupa que havia
feito, resolve abandonar a moda e se tornar caminhoneiro.
"O melhor costureiro do
mundo conduzia caminhões da
Camorra entre Secondigliano e
o lago de Garda", escreve Saviano numa comovente passagem
do livro. "Ele não podia dizer:
"Este vestido, fui eu que o fiz".
Ninguém acreditaria nele."
com VIVIAN WITHEMAN
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