São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 2008

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Última Moda

ALCINO LEITE NETO - ultima.moda@grupofolha.com.br

Relações perigosas

"Gomorra", que passa na Mostra Internacional de Cinema, revela os laços da moda italiana com o crime organizado

Uma nuvem negra paira sobre a moda italiana depois das denúncias feitas pelo escritor e jornalista Roberto Saviano no livro "Gomorra", uma reportagem bombástica sobre a Camorra, a gigantesca organização criminosa baseada na região de Nápoles.
As relações perigosas da moda com o crime também ocupam lugar central no filme "Gomorra", inspirado no livro, um dos programas incontornáveis da Mostra Internacional de Cinema (hoje o filme passa às 18h, na Sala Cinemateca).
Dirigido por Matteo Garrone, "Gomorra" recebeu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano e, com suas imagens fortes e urgentes, trouxe um novo sopro de vida ao declinante cinema italiano. Concorre a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro em 2009.
O filme transforma em ficção episódios relatados na extensa reportagem de Saviano, lançada em 2006 e que já vendeu mais de 1 milhão de cópias em 40 países. O filme deve estrear em dezembro, acompanhado do lançamento do livro. Além de sua relevância jornalística, a obra tem valor literário: é um rebento contemporâneo da escola neo-realista italiana.
Saviano escreveu o livro entre 2004 e 2005, a partir de investigações feitas em bairros perigosos como Scampia e Secondigliano, onde ele foi viver e trabalhar. Os relatos são impressionantes -por revelarem a extensão do poder da Camorra e também a crueldade dos seus crimes. Hoje com 29 anos, o autor anda em carro blindado e vive sob proteção policial, após receber ameaças da organização, que anunciou pretender matá-lo até o Natal.
No livro, a fantasia glamourosa da moda italiana cai por terra logo nas primeiras páginas. Ele faz uma denúncia minuciosa sobre a maneira como grifes de prestígio mundial, a fim de minimizar custos, produziram suas roupas no sul da Itália em ateliês terceirizados, que estão sob o domínio da Camorra, repletos de imigrantes ilegais e gente subempregada.
Além de controlar o tráfico de drogas, se imiscuir na produção de alimentos e possuir um império imobiliário e de construção, a Camorra -conta Saviano- também manda no contrabando de calçados, tecidos e outros produtos que aportam da Ásia no disputado porto de Nápoles.

Silêncio das grifes
Os clãs camorristas ainda estão por trás de numerosas fábricas de confecção da região e são donos de lojas de roupas nas principais cidades do mundo, inclusive no Brasil, onde vendem produtos pirateados de marcas famosas.
Estas, por sua vez, fizeram vista grossa da pirataria que, paradoxalmente, teria contribuído para tornar a moda italiana conhecida no mundo.
Escreve Saviano: "Se quase ninguém vestir as roupas dos grandes costureiros, se elas só forem vistas no corpo de modelos anoréxicas durante a temporada de desfiles, o mercado se apaga lentamente e o prestígio diminui também. Os ateliês napolitanos fabricavam roupas ilícitas em tamanhos que as grifes não produziam, por razões de imagem".
Segundo Saviano, as grandes grifes só começaram a protestar contra a ingerência do crime organizado nos negócios da moda depois que esta foi revelada pela Antimafia -comissão parlamentar que investiga a ação mafiosa na Itália.
Denunciar antes significaria para as grifes perder a mão-de-obra barata e o acesso às fábricas da região napolitana, sem falar nos entraves à distribuição das roupas que a Camorra criaria para as marcas.
O livro cita nominalmente as grifes Valentino, Gianfranco Ferré, Versace e Armani.
A relação ilícita da moda com o crime é um dos fios condutores do filme "Gomorra", feito de uma multiplicidade de histórias que tentam dar conta das várias implicações da Camorra na vida napolitana e italiana.
Logo no início, o filme mostra a elegante executiva de uma grife fazendo o "leilão" de uma encomenda de trabalho entre os pequenos ateliês de costura napolitanos -subservientes à Camorra. Aquele que oferece o preço mais baixo de confecção leva a encomenda.
No meio da bandalheira, surge um dos personagens mais patéticos do filme, Pasquale, o costureiro-chefe de uma confecção (e, no livro, uma fonte jornalística de Saviano). Apesar de ser o responsável pela feitura de belos vestidos das grifes numa pequena fábrica, seu trabalho é mal pago - 600 por mês (cerca de R$ 1.750)- e pouco reconhecido.
Pasquale decide, então, enfrentar todos os riscos e "vender" seus conhecimentos para um clã chinês que atua em Nápoles, ensinando a arte da alta-costura para centenas de imigrantes orientais. Na fábrica chinesa, além de receber um bom dinheiro, ele é chamado de "maestro" e ganha uma salva de palmas.
As súbitas honrarias não são suficientes para consolá-lo da falta de reconhecimento por seu trabalho. Quando Pasquale assiste na TV à atriz Scarlett Johansson (no livro, Angelina Jolie) chegando à entrega do Oscar com a roupa que havia feito, resolve abandonar a moda e se tornar caminhoneiro.
"O melhor costureiro do mundo conduzia caminhões da Camorra entre Secondigliano e o lago de Garda", escreve Saviano numa comovente passagem do livro. "Ele não podia dizer: "Este vestido, fui eu que o fiz". Ninguém acreditaria nele."

com VIVIAN WITHEMAN



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