São Paulo, sábado, 17 de outubro de 1998

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O espirro de Ieltsin, fé e razão

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

George, o tufão, sossegou, mas o alfabeto ainda não completou o seu primeiro terço. Curiosa a inclinação antropomórfica dos cientistas: ao humanizar os fenômenos naturais, dando-lhes nomes pela ordem alfabética, tentam aproximar o ser humano da natureza. Lembrar que não são acidentes isolados, exemplos da sazonalidade, mas partes de um grande sistema. Talvez para deificá-lo. Como Spinoza, quando pronunciou a divisa panteísta "Deus Siva Natura" (Deus ou a Natureza).
Estamos sob o império do fragmento e do incidental. O espirro de Ieltsin, o orgasmo de Clinton, o onanismo de Kenneth Starr, os juros do Fed, os pregões em Wall Street, o buraco nos bancos japoneses, os humores de Newt Gingrich, as perversidades de Milosevic, a tendinite de Ronaldinho, as trapaças de Bibi Netanyahu, as incoerências do brizolismo, os ardis do PFL, as culpas do Ibope -tudo vem moído, atomizado. Fenômenos sem fenomenologia, Husserl ficaria doido.
A mídia ajuda na trituração. A mídia ou aquele conjunto de almas inquietas e solitárias que, em todo o mundo, todas as tardes (nos telejornais) ou às noites (nos jornais) mergulha na sublime tarefa de escolher as transcendentes mutações e os cortes epistemológicos a serem revelados nas novas edições.
O Vaticano e a Real Academia de Ciências da Suécia, no mesmo dia, produziram uma surpreendente reviravolta. Graças a ela, a filosofia virou manchete na Folha. Com diferentes concepções e procedimentos, as duas instituições parecem enxergar na mesma direção. Estão percebendo tendências e costurando as mesmas circunstâncias com tecidos diferentes.
Ainda em 1991, o Papa Woytila divulgava a encíclica "Centesimus Annus", alertando para o capitalismo selvagem e radical, a ganância. Agora, acaba de produzir "Fides et Ratio", elaboração sobre fé e razão, tentativa de conciliar o irreconciliável. Segundo Araujo Netto, o experimentado correspondente na Itália e grande conhecedor dos mistérios do Vaticano, o documento não procura condenar ou exaltar uma ou outra, mas tenta a "reciprocidade circular" ("Jornal do Brasil", 15/ 10/98).
Esforço inédito sob o ponto de vista conceitual, mas sobretudo formal. No entardecer da era dos extremos e na véspera do choque entre os clericalismos e fundamentalismos religiosos, o Vaticano parece relaxar o milenar encarniçamento que levou a tantos desatinos. Começa a se armar o cenário para uma "entente cordiale" no campo da metafísica e da teologia, capaz de aparar arestas e produzir encaixes.
Ano passado, a Academia de Ciências da Suécia, no capítulo da teoria econômica, premiou os americanos Robert Merton e Myron Scholes por suas teorias sobre o mercado de derivativos, eufemismo que designa a jogatina de alto risco, especulativa e desenfreada. Em setembro passado, o fundo administrado pelos dois gurus quase quebrou, provocando uma queda nos pregões de todo o mundo: estava com um buraco de 3,5 bilhões de dólares.
Na última quarta-feira, veio a correção do estrondoso vexame: Amartya Sen não é apenas o primeiro economista do antigo Terceiro Mundo a ser laureado em Estocolmo. É também o primeiro preocupado com o "welfare" (bem-estar) desde 1972: antes dele apenas o americano Paul Samuelson e o inglês John Hicks. O professor bengali, antes em Harvard hoje em Cambridge, desenvolveu trabalhos de campo para provar que a fome não resulta da baixa produção de alimentos, mas de outros fatores, como o mercado livre e políticas públicas. "Pobreza e Fome, Ensaio sobre Direito e Privação", publicado em 1981, é a sua "ópera magna".
A intangibilidade dos mercados e a cultura da fragmentação levaram duas sérias estocadas simultâneas. Também o racionalismo das cifras, a proposta do caos construtivo, o culto da volatilidade, da destruição criativa. O Papa Woytila com a Academia sueca e Amartia Sen iniciaram um movimento reparador que pode ter sérias implicações no pensamento deste final do século.
No turbilhão da desregulamentação e dos impulsos erráticos, aparecem indícios reparadores de que há um sistema em gestação. O desarranjo arranja- se. Mais do que isso: há um movimento de acomodação de idéias, agregador, não-excludente, capaz de fundir a massa de informações e transformá-la em conhecimento.
A revisão do processo inquisitorial contra Galileu no ano passado pode ter sido a primeira etapa desta "Fides e Ratio". Nos anos 50, o patriarca do Estado de Israel, David Ben Gurion, estudioso da filosofia grega, entendeu que era a hora de levantar a excomunhão de Spinoza pelos rabinos de Amsterdã. Não conseguiu, por razões processuais, seria preciso criar um tribunal superior de rabinos que invalidasse a sentença anterior.
Ben Gurion deixou um desafio ao judaísmo da diáspora (porque o de Israel está ensandecido com questões terrenas como a paz com os palestinos). Fé e razão são passíveis de conciliação, a ética pode servir de ponte. Hora de revisitar Bento, Benedictus ou Baruch Spinoza, de quem se disse que viveu intoxicado com Deus e morreu banido pelas religiões.



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