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O espirro de Ieltsin, fé e razão
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
George, o tufão, sossegou,
mas o alfabeto ainda não completou o seu primeiro terço. Curiosa a inclinação antropomórfica dos cientistas: ao humanizar os fenômenos naturais,
dando-lhes nomes pela ordem
alfabética, tentam aproximar o
ser humano da natureza. Lembrar que não são acidentes isolados, exemplos da sazonalidade, mas partes de um grande
sistema. Talvez para deificá-lo.
Como Spinoza, quando pronunciou a divisa panteísta
"Deus Siva Natura" (Deus ou a
Natureza).
Estamos sob o império do
fragmento e do incidental. O espirro de Ieltsin, o orgasmo de
Clinton, o onanismo de Kenneth Starr, os juros do Fed, os
pregões em Wall Street, o buraco nos bancos japoneses, os humores de Newt Gingrich, as perversidades de Milosevic, a tendinite de Ronaldinho, as trapaças de Bibi Netanyahu, as incoerências do brizolismo, os ardis do PFL, as culpas do Ibope
-tudo vem moído, atomizado.
Fenômenos sem fenomenologia, Husserl ficaria doido.
A mídia ajuda na trituração.
A mídia ou aquele conjunto de
almas inquietas e solitárias
que, em todo o mundo, todas as
tardes (nos telejornais) ou às
noites (nos jornais) mergulha
na sublime tarefa de escolher as
transcendentes mutações e os
cortes epistemológicos a serem
revelados nas novas edições.
O Vaticano e a Real Academia de Ciências da Suécia, no
mesmo dia, produziram uma
surpreendente reviravolta. Graças a ela, a filosofia virou manchete na Folha. Com diferentes
concepções e procedimentos, as
duas instituições parecem enxergar na mesma direção. Estão percebendo tendências e
costurando as mesmas circunstâncias com tecidos diferentes.
Ainda em 1991, o Papa Woytila divulgava a encíclica "Centesimus Annus", alertando para o
capitalismo selvagem e radical,
a ganância. Agora, acaba de
produzir "Fides et Ratio", elaboração sobre fé e razão, tentativa de conciliar o irreconciliável. Segundo Araujo Netto, o
experimentado correspondente
na Itália e grande conhecedor
dos mistérios do Vaticano, o
documento não procura condenar ou exaltar uma ou outra,
mas tenta a "reciprocidade circular" ("Jornal do Brasil", 15/
10/98).
Esforço inédito sob o ponto de
vista conceitual, mas sobretudo
formal. No entardecer da era
dos extremos e na véspera do
choque entre os clericalismos e
fundamentalismos religiosos, o
Vaticano parece relaxar o milenar encarniçamento que levou
a tantos desatinos. Começa a se
armar o cenário para uma "entente cordiale" no campo da
metafísica e da teologia, capaz
de aparar arestas e produzir encaixes.
Ano passado, a Academia de
Ciências da Suécia, no capítulo
da teoria econômica, premiou
os americanos Robert Merton e
Myron Scholes por suas teorias
sobre o mercado de derivativos,
eufemismo que designa a jogatina de alto risco, especulativa e
desenfreada. Em setembro passado, o fundo administrado pelos dois gurus quase quebrou,
provocando uma queda nos
pregões de todo o mundo: estava com um buraco de 3,5 bilhões de dólares.
Na última quarta-feira, veio a
correção do estrondoso vexame:
Amartya Sen não é apenas o
primeiro economista do antigo
Terceiro Mundo a ser laureado
em Estocolmo. É também o primeiro preocupado com o "welfare" (bem-estar) desde 1972:
antes dele apenas o americano
Paul Samuelson e o inglês John
Hicks. O professor bengali, antes em Harvard hoje em Cambridge, desenvolveu trabalhos
de campo para provar que a fome não resulta da baixa produção de alimentos, mas de outros
fatores, como o mercado livre e
políticas públicas. "Pobreza e
Fome, Ensaio sobre Direito e
Privação", publicado em 1981, é
a sua "ópera magna".
A intangibilidade dos mercados e a cultura da fragmentação levaram duas sérias estocadas simultâneas. Também o racionalismo das cifras, a proposta do caos construtivo, o culto
da volatilidade, da destruição
criativa. O Papa Woytila com a
Academia sueca e Amartia Sen
iniciaram um movimento reparador que pode ter sérias implicações no pensamento deste final do século.
No turbilhão da desregulamentação e dos impulsos erráticos, aparecem indícios reparadores de que há um sistema em
gestação. O desarranjo arranja-
se. Mais do que isso: há um movimento de acomodação de
idéias, agregador, não-excludente, capaz de fundir a massa
de informações e transformá-la
em conhecimento.
A revisão do processo inquisitorial contra Galileu no ano
passado pode ter sido a primeira etapa desta "Fides e Ratio".
Nos anos 50, o patriarca do Estado de Israel, David Ben Gurion, estudioso da filosofia grega, entendeu que era a hora de
levantar a excomunhão de Spinoza pelos rabinos de Amsterdã. Não conseguiu, por razões
processuais, seria preciso criar
um tribunal superior de rabinos que invalidasse a sentença
anterior.
Ben Gurion deixou um desafio ao judaísmo da diáspora
(porque o de Israel está ensandecido com questões terrenas
como a paz com os palestinos).
Fé e razão são passíveis de conciliação, a ética pode servir de
ponte. Hora de revisitar Bento,
Benedictus ou Baruch Spinoza,
de quem se disse que viveu intoxicado com Deus e morreu banido pelas religiões.
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