São Paulo, sábado, 17 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTE E LOUCURA

O falatório que virou poesia

Livro reúne pela primeira vez dizeres poéticos de Stela do Patrocínio, esquizofrênica que viveu no maior hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Era uma negra alta, sem nenhum dente na boca, que costumava zanzar, tagarela, pelo maior hospital psiquiátrico do Rio. Parecia uma máquina de falar.
Enrolada em um cobertor, com o rosto às vezes pintado de branco, disparava uma sucessão de frases desconcertantes. "Quando o sol penetra no dia, dá um dia de sol muito bonito, muito belo." A voz firme raramente cometia erros gramaticais. Pronunciava cada sílaba com rigores de orador.
"Meu nome verdadeiro é caixão, enterro, cemitério, defunto, cadáver, esqueleto humano, asilo de velhos." Todo mundo, porém, a chamava de Stela do Patrocínio. Numa manhã de março de 1966, chegou à Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, manicômio quase tão extenso quanto a praia de Copacabana.
Diagnósticos médicos a apontavam como dona de uma "personalidade psicopática", acrescida de "esquizofrenia hebefrênica". Doida, enfim. Mas uma doida que insistia em se preservar "consciente". Rejeitava, um a um, os psicotrópicos que lhe ministravam. Cuspia comprimidos na mesma proporção em que gritava coisas mágicas: "Você está me comendo tanto pelos olhos, que já não tenho de onde tirar força pra te alimentar".
Durante duas décadas, funcionários do hospital desprezaram os dizeres da interna que adorava biscoito de chocolate, maço de cigarros, leite condensado, caixa de fósforos e óculos escuros. Não enxergavam, nas palavras de Stela, nada mais do que loucura. "Nasci louca. Meus pais queriam que eu fosse louca. Os normais tinham inveja de mim, que era louca."
Em 1986, contudo, as artistas plásticas Neli Gutmacher e Carla Guagliardi, que tocavam um ateliê dentro da colônia, farejaram poesia naquele blablablá desvairado. Resolveram, então, gravar os tais delírios, tarefa que só concluíram dois anos depois.
Mais tarde, em 1991, Mônica Ribeiro (à época, estagiária de psicologia) transcreveu as sessões terapêuticas que dividia com a inusitada paciente. À semelhança de Neli e Carla, suspeitava que existia arte sob a maluquice de Stela.
Estavam, as três, certíssimas, como demonstra "Reino dos Bichos e dos Animais É o Meu Nome", que a editora Azougue lança na próxima semana.
Trata-se de um livro assombroso -pela beleza e pelos sobressaltos que provoca. Um século de psicanálise já deixou bem claro o quão tênues podem ser os limites entre razão e loucura. Ainda assim, flagrar lucidez na verborragia aparentemente caótica de Stela desperta profunda inquietação.
Em 157 páginas, encontram-se 79 falas, apresentadas à maneira de poemas, com versos e estrofes. Há, também, um curioso depoimento biográfico da autora, no formato de perguntas e respostas.
A poeta, filósofa e psicanalista capixaba Viviane Mosé, 37, organizou a coletânea a partir das transcrições de Mônica e gravações de Carla e Neli. Ora reproduz discursos inteiros, ditos de um só fôlego. Ora elege fragmentos de conversas, que isolou de um contexto maior, mas sem efetuar cortes no trecho destacado.
Stela, entretanto, não presenciará o lançamento. Solitária, morreu em 1992, nas dependências da colônia -hoje, Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, que abriga cerca de 950 internos. Foi um fim trágico. Primeiro, perdeu a perna por causa de uma hiperglicemia grave. Deprimida, emudeceu e se negou a comer, o que a empurrou para um quadro infeccioso fatal.
Pouco mais se sabe sobre ela: que nasceu em 1941; que se declarava solteira e empregada doméstica; que cursara o segundo grau; que redigia frases ou números em papelões; que não recebia visitas; que a mãe também enlouquecera.
"Os poemas que o livro reúne não derivam apenas de um jorro inconsciente, como costuma ocorrer com manifestações artísticas de psicóticos", explica Viviane. "Stela, por mecanismos misteriosos, tinha certa consciência de que produzia arte. Conseguia distinguir o discurso poético da retórica cotidiana. Tanto que, quando se expressava poeticamente, não dizia estar falando. Afirmava estar "fazendo falatório" e "colocando o mundo para gozar"."
Daí Viviane defender que Stela é sobretudo uma artista ("louca, mas artista"). "Seu "falatório" constrói-se em cima de criativos jogos verbais, refinado senso rítmico e temas recorrentes -por exemplo, a sexualidade feminina e a exclusão imposta pela doença mental."
Nesse aspecto, o do vigor estético que se sobrepõe à loucura, Stela assemelha-se a Arthur Bispo do Rosario (1911-1989), outro interno da Colônia Juliano Moreira. Os dois, embora contemporâneos, nunca se conheceram, uma vez que homens e mulheres não se misturavam no manicômio.
A peculiar obra de Bispo, composta de mantos bordados, estandartes e esculturas, ganhou fama internacional. A de Stela -que já serviu de mote para um monólogo interpretado por Clarisse Baptista no último Festival de Teatro de Curitiba- só agora começa a romper as fronteiras hospitalares.
"Tomara que voe muito", ambiciona Ricardo Aquino, 49, diretor do Museu Bispo do Rosario (RJ). "A fala de Stela é arte, mas também denuncia os métodos desumanos que, durante longo tempo, caracterizaram o tratamento psiquiátrico no país."


REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É O MEU NOME - De: Stela do Patrocínio. Organização e apresentação: Viviane Mosé. Editora: Azougue (tel. 0/xx/21/ 2239-6606, www.azougue.com.br). 157 págs., R$ 20.


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Panorâmica - Artes: Fundação Japão abre inscrições para bolsas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.