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ARTE E LOUCURA
O falatório que virou poesia
Livro reúne pela primeira vez dizeres poéticos de Stela do Patrocínio, esquizofrênica que viveu no maior hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Era uma negra alta, sem nenhum dente na boca, que costumava zanzar, tagarela, pelo maior
hospital psiquiátrico do Rio. Parecia uma máquina de falar.
Enrolada em um cobertor, com
o rosto às vezes pintado de branco, disparava uma sucessão de
frases desconcertantes. "Quando
o sol penetra no dia, dá um dia de
sol muito bonito, muito belo." A
voz firme raramente cometia erros gramaticais. Pronunciava cada sílaba com rigores de orador.
"Meu nome verdadeiro é caixão, enterro, cemitério, defunto,
cadáver, esqueleto humano, asilo
de velhos." Todo mundo, porém,
a chamava de Stela do Patrocínio.
Numa manhã de março de 1966,
chegou à Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, manicômio
quase tão extenso quanto a praia
de Copacabana.
Diagnósticos médicos a apontavam como dona de uma "personalidade psicopática", acrescida
de "esquizofrenia hebefrênica".
Doida, enfim. Mas uma doida que
insistia em se preservar "consciente". Rejeitava, um a um, os
psicotrópicos que lhe ministravam. Cuspia comprimidos na
mesma proporção em que gritava
coisas mágicas: "Você está me comendo tanto pelos olhos, que já
não tenho de onde tirar força pra
te alimentar".
Durante duas décadas, funcionários do hospital desprezaram
os dizeres da interna que adorava
biscoito de chocolate, maço de cigarros, leite condensado, caixa de
fósforos e óculos escuros. Não enxergavam, nas palavras de Stela,
nada mais do que loucura. "Nasci
louca. Meus pais queriam que eu
fosse louca. Os normais tinham
inveja de mim, que era louca."
Em 1986, contudo, as artistas
plásticas Neli Gutmacher e Carla
Guagliardi, que tocavam um ateliê dentro da colônia, farejaram
poesia naquele blablablá desvairado. Resolveram, então, gravar
os tais delírios, tarefa que só concluíram dois anos depois.
Mais tarde, em 1991, Mônica Ribeiro (à época, estagiária de psicologia) transcreveu as sessões terapêuticas que dividia com a inusitada paciente. À semelhança de
Neli e Carla, suspeitava que existia
arte sob a maluquice de Stela.
Estavam, as três, certíssimas,
como demonstra "Reino dos Bichos e dos Animais É o Meu Nome", que a editora Azougue lança
na próxima semana.
Trata-se de um livro assombroso -pela beleza e pelos sobressaltos que provoca. Um século de
psicanálise já deixou bem claro o
quão tênues podem ser os limites
entre razão e loucura. Ainda assim, flagrar lucidez na verborragia aparentemente caótica de Stela desperta profunda inquietação.
Em 157 páginas, encontram-se
79 falas, apresentadas à maneira
de poemas, com versos e estrofes.
Há, também, um curioso depoimento biográfico da autora, no
formato de perguntas e respostas.
A poeta, filósofa e psicanalista
capixaba Viviane Mosé, 37, organizou a coletânea a partir das
transcrições de Mônica e gravações de Carla e Neli. Ora reproduz
discursos inteiros, ditos de um só
fôlego. Ora elege fragmentos de
conversas, que isolou de um contexto maior, mas sem efetuar cortes no trecho destacado.
Stela, entretanto, não presenciará o lançamento. Solitária, morreu em 1992, nas dependências da
colônia -hoje, Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano
Moreira, que abriga cerca de 950
internos. Foi um fim trágico. Primeiro, perdeu a perna por causa
de uma hiperglicemia grave. Deprimida, emudeceu e se negou a
comer, o que a empurrou para
um quadro infeccioso fatal.
Pouco mais se sabe sobre ela:
que nasceu em 1941; que se declarava solteira e empregada doméstica; que cursara o segundo grau;
que redigia frases ou números em
papelões; que não recebia visitas;
que a mãe também enlouquecera.
"Os poemas que o livro reúne
não derivam apenas de um jorro
inconsciente, como costuma
ocorrer com manifestações artísticas de psicóticos", explica Viviane. "Stela, por mecanismos misteriosos, tinha certa consciência de
que produzia arte. Conseguia distinguir o discurso poético da retórica cotidiana. Tanto que, quando
se expressava poeticamente, não
dizia estar falando. Afirmava estar
"fazendo falatório" e "colocando o
mundo para gozar"."
Daí Viviane defender que Stela é
sobretudo uma artista ("louca,
mas artista"). "Seu "falatório"
constrói-se em cima de criativos
jogos verbais, refinado senso rítmico e temas recorrentes -por
exemplo, a sexualidade feminina
e a exclusão imposta pela doença
mental."
Nesse aspecto, o do vigor estético que se sobrepõe à loucura, Stela assemelha-se a Arthur Bispo do
Rosario (1911-1989), outro interno da Colônia Juliano Moreira. Os
dois, embora contemporâneos,
nunca se conheceram, uma vez
que homens e mulheres não se
misturavam no manicômio.
A peculiar obra de Bispo, composta de mantos bordados, estandartes e esculturas, ganhou fama
internacional. A de Stela -que já
serviu de mote para um monólogo interpretado por Clarisse Baptista no último Festival de Teatro
de Curitiba- só agora começa a
romper as fronteiras hospitalares.
"Tomara que voe muito", ambiciona Ricardo Aquino, 49, diretor
do Museu Bispo do Rosario (RJ).
"A fala de Stela é arte, mas também denuncia os métodos desumanos que, durante longo tempo,
caracterizaram o tratamento psiquiátrico no país."
REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É
O MEU NOME - De: Stela do Patrocínio.
Organização e apresentação: Viviane
Mosé. Editora: Azougue (tel. 0/xx/21/
2239-6606, www.azougue.com.br).
157 págs., R$ 20.
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