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LITERATURA
Premiado com o Goncourt neste mês, escritor ambienta "Rouge Brésil" no Rio de Janeiro colonial de 1555
Rufin retrata guerra de religiões no Brasil
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Em 1555, o cavalheiro francês
Nicolas Durand de Villegagnon
embarca, com três navios, rumo
às terras recém-descobertas do
Brasil. Segue com o objetivo de
fundar no país uma França Antártica. Aporta na baía de Guanabara, vazia de portugueses e repleta de índios, e se estabelece numa
ilha (hoje, do Governador), onde
fica até 1560, quando o português
Mem de Sá ocupa a região.
Para os brasileiros, o episódio é
o marco da fundação do Rio de
Janeiro, por Estácio de Sá. Para os
franceses, ele estará de agora em
diante ligado ao romance de
aventuras e polêmica religiosa
"Rouge Brésil", do escritor Jean-Christophe Rufin, que ganhou
neste mês o prêmio literário mais
importante do país, o tradicional
Goncourt.
Rufin, 49, viveu em Recife dois
anos, de 1989 a 1990, como adido
cultural do Consulado Geral da
França no Nordeste. Foi um dos
pioneiros da organização humanitária Médicos sem Fronteiras. É
autor de "O Abissínio", lançado
pela Record. Já recebeu várias
propostas de editoras brasileiras
para publicar "Rouge Brésil".
Best-seller desde o seu lançamento, em setembro, o livro esgotou nos últimos dias em várias livrarias de Paris. O Goncourt fez
uma opção que contrariou boa
parte da crítica, mas agradou aos
leitores: o livro de Rufin é essencialmente convencional, mas fascinante, pelo quadro histórico,
pelos dispositivos mitológicos e
pela narrativa folhetinesca, que
lembram os clássicos juvenis.
São 551 páginas que se lê de uma
vez, em que a pesquisa histórica
exaustiva feita pelo autor se mescla às imaginativas aventuras de
dois adolescentes, Just e Colombe, que são levados na expedição
para aprenderem o idioma indígena e servirem de intérpretes para os franceses. A viagem para eles
é também a busca pelo pai, cujo
paradeiro perderam, e a passagem para a vida adulta.
O nome do livro, "Vermelho
Brasil", vem da cor da tinta extraída do pau-brasil e serve de imagem aos conflitos que expõe: entre portugueses e franceses, católicos e protestantes, Reforma e
Contra-Reforma, europeus e indígenas, fanatismo e assimilação.
O livro reconta como calvinistas
foram convidados a colonizar o
país pelo católico Villegagnon,
que sonha com um mundo de tolerância religiosa. O conflito, porém, estoura entre eles, trazendo a
guerra de religiões que se travava
na Europa para as costas do Brasil. "Consigo imaginar um Brasil
que fosse francês, mas não um
Brasil que tivesse se tornado calvinista", diz Rufin na entrevista a
seguir, feita na sede de sua editora
francesa, a Gallimard.
Folha - O canibalismo tem um papel importante no livro. Por um lado, ele faz parte da cultura indígena. Por outro, ele é associado pelos
puritanos à prática católica da
transubstanciação de Cristo na
hóstia. A partir dessa sua idéia romanesca, o sr. acredita que há uma
relação mais forte da cultura antropofágica com o catolicismo do que
com o protestantismo?
Rufin - (ri) Para responder, é
preciso talvez fazer uma relação
com o Brasil contemporâneo. O
Brasil moderno é ao mesmo tempo católico na sua prática e antropofágico. Ele guardou essa capacidade de digerir as culturas. E o
próprio catolicismo brasileiro é
um pouco antropofágico, na sua
capacidade de absorver enormemente crenças diferentes. Isso
sem falar do candomblé. Se você
compara com os Estados Unidos,
a integração lá foi feita de maneira
muito mais seca. Em geral, em todas as colônias antigas inglesas
houve uma distância muito forte
entre os brancos e os outros.
Folha - Os portugueses parecem
caricaturas no livro, mas foram eles
que fizeram a colonização. O que
faltou aos franceses para obterem
a vitória no território brasileiro?
Rufin - O que eu queria mostrar
é que os portugueses não ganharam essa guerra contra os franceses. Eles ocuparam uma terra que
os franceses, que estavam divididos, não souberam manter. Não
foi uma vitória portuguesa, nisso
eu insisto, embora não seja a Copa do Mundo. Mas talvez tenha sido uma vitória moral, na medida
em que os jesuítas e os portugueses eram portadores de uma mensagem muito forte, unitária e brutal também, que era a do Concílio
de Trento, da ideologia estável da
Contra-Reforma.
Folha - É surpreendente como o
sr. se alonga num debate entre calvinistas e católicos diante da selva
brasileira. Mesmo no nível do mito,
este é um tema crucial para o país
se se pensa nas teses de Max Weber. O sr. acha que devemos deplorar que os puritanos não tenham se
instalado no Brasil?
Rufin - Isso depende. No plano
econômico, talvez... Eu posso
imaginar um Brasil francês, mas
não consigo imaginar um Brasil
calvinista, não sei por quê. Acho
que havia uma verdadeira incompatibilidade entre a prática dos
calvinistas e os indígenas. Alguns
dizem que os calvinistas tinham
um respeito muito acentuado pelos índios. De fato, quando lemos
Jean de Léry, nos damos conta de
que ele não os considerava capazes de serem convertidos, que
eram muito primitivos para ascender à palavra de Deus. Dito de
outra forma, ele os considerava
como animais, e é por isso que ele
os respeitava e os observava com
tanto cuidado. Penso que os calvinistas eram muito distantes dos
índios e que os católicos puderam
de alguma forma fazer uma síntese.
Folha - Villegagnon diz no romance: "Não se pode servir Deus a
não ser pela força". O que o seu romance tem a dizer a respeito de
nossa atualidade?
Rufin - O livro foi escrito, claro,
antes dos atentados, mas é um romance sobre o fanatismo, sobre a
sua mecânica. Temos ali duas formas do mesmo monoteísmo, católico e protestante. O livro mostra que, embora estas sejam hoje
religiões sobretudo tranquilas e
pacíficas, nelas existiu e existe o
espírito da intolerância, do fanatismo e do assassinato. É interessante isso no livro, pois hoje podemos ser levados a crer que o fanatismo é próprio de uma religião
particular, o islamismo, quando
na verdade ele aparece em todas
as fés monoteístas.
ROUGE BRÉSIL - Autor: Jean-Christophe
Rufin. Editora: Gallimard. Quanto: 137,75
francos (551 págs.).
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