São Paulo, quarta-feira, 17 de novembro de 2010

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Peças miram limite entre o real e a ficção

Diretores adeptos do teatro documentário fazem longas entrevistas para tirar a "máscara social" dos relatos

"Tudo o que se vê em cena é ficção; não é possível capturar a verdade", afirma a diretora Vivi Tellas

EM BUENOS AIRES

Numa sala do campus da New York University em plena Buenos Aires, estudantes americanos de literatura assistem intrigados à explanação da diretora Vivi Tellas.
Ela apresenta seu teatro de (e com) gente comum falando do câncer não anunciado à mãe de 95 anos ("Cozarinsky e seu Médico"), da descoberta do prazer na terceira idade ou do faz-de-conta católico num ambiente antissemita, na infância (em "Minha Mãe e Minha Tia").
"Mas uma hora seus parentes [protagonistas de "Minha Mãe...'] começaram a atuar, né?", indaga um deles.
"Claro. O espetáculo ficou em cartaz por três anos. Depois de tantas apresentações, não era mais tão espontâneo", responde ela, antes de provocar. "Tudo o que se vê em cena é ficção. A verdade se perde ao acontecer, é impossível de capturar. Trabalho no limite em que a realidade começa a ser ficção."
A essa zona nebulosa ela dá o nome de umbral mínimo de ficção. E cuida para que, nos ensaios com seus performers/intérpretes, "caia a máscara social de ser agradável", abrindo espaço para a "parte feia", a mesma que interessa a Marcelo Soler, diretor da Cia. Teatro Documentário, em São Paulo, uma das primeiras a se dedicar exclusivamente à vertente no país.
"A própria memória já tem um mecanismo seletivo e criativo, conta histórias para nós que talvez não sejam "a" história", afirma ele. "O documentário não quer trazer o real para a cena, mas documentar os pontos de vista sobre ele. Assim, a contradição e a mentira podem ser interessantes, o desonesto revelando percepções sociais."
O diretor suíço Stefan Kaegi, que já sacou teatro das confidências de porteiros, operadores de telemarketing e da conduta imprevisível de coelhos e iguana postos a contracenar com seus donos, é mais reticente em admitir essa "intromissão" ficcional.
"Pode ser. Não verifico [a autenticidade dos relatos]. São trabalhos sobre o que eles acham que a vida deles é. Não é terapia. Mas não aceito idealização demais."

ALARME
Independentemente da latitude, os métodos de quem se propõe a fazer teatro documentário são parecidos.
Sempre há longas entrevistas (que podem ser filmadas ou não) para mapear anedotas, cacoetes e predileções mas também (e sobretudo) questões mal resolvidas e fantasmas das pessoas das quais se vai tratar. Elas podem tanto estar em cena quanto ser encarnadas por atores (como acontece na companhia paulistana).
"Me interessa quando o alarme soa, quando as coisas não batem", explica Vivi.
Nos ensaios, ela lança mão de algumas "boias": pede que os performers tragam fotos, cartas e objetos, além de sondar sobre acidentes e acerca da relação deles com a arte. E vai selecionando as declarações mais contundentes, nas quais pede que o elenco se fixe.
Vivi enxerga em Stefan uma abordagem mais "jornalística" dos temas, sem tanta preocupação com a teatralidade. Ex-jornalista, ele rechaça a aproximação. "Em 110 linhas, tinha de explicar o mundo. Era muito estressante. Não conseguia me aproximar das realidades que desejava retratar."
(LUCAS NEVES)


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