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MEMÓRIA GÉRARD LEBRUN
A filosofia como humor
RENATO JANINE RIBEIRO
especial para a Folha
Nunca fui aluno de Gérard Lebrun nem conheço bem sua obra,
já que meus interesses estiveram,
desde muito tempo, voltados para
a filosofia política e as interfaces
desta com a literatura, a psicologia e a história, ao passo que os
dele se concentravam na história
da filosofia. Mas durante cerca de
dez anos, entre 1976 e 86, tive o
prazer de traduzir muitos artigos
seus, para o "Jornal da Tarde", e
de privar com sua amizade.
O que posso evocar é algo da
pessoa. Quem o conhecia tinha a
boa surpresa de encontrar alguém sem nenhuma arrogância,
o que nem sempre acontece no
Brasil com intelectuais de seu
porte. Por exemplo, e isso apesar
de suas simpatias políticas cada
vez mais à direita, que o faziam irritar-se quando alguém atacava
Le Pen ou Pasqua, ele era atavicamente democrático no trato das
pessoas. O Brasil é uma sociedade
muito iníqua -e Lebrun jamais
foi cúmplice disso. Recebia em casa as pessoas de quem gostava,
misturando as classes sociais. Não
creio que nisso houvesse uma
convicção política, pelo menos
das usuais. Era um jeito de ser,
um "ethos".
Também por isso, jamais, pelo
menos desde que o conheci, em
1974, ocultou sua preferência (opção? nunca sei) homossexual. É
verdade que somente dois anos
atrás ele afirmou de público, num
jornal (esta Folha), que era homossexual. Contudo, disso não se
pode supor que, antes, escondesse ou sequer se calasse a respeito.
O armário não era de seu feitio.
Suas escolhas, sexuais ou políticas, ele não as guardava escondidas.
Finalmente, o humor: não sei se
era um modo de ser ou também
uma estratégia. Impressionou-me uma conferência que deu na
Universidade de Brasília, há 20
anos, e da qual fui debatedor, depois publicada num livro da editora da UnB ("Hegel", 1981), que
está para sair em segunda edição.
Ao chegar para a palestra, ele percebeu que a sala estava cheia de
estudantes de graduação de outras áreas que não a filosofia, os
quais não compreenderiam uma
obra difícil como a do pensador
da dialética.
Entre uma fala totalmente fechada sobre si mesma e que somente meia dúzia de colegas
compreenderia (e que seria a escolha da maior parte dos professores de filosofia) e uma divulgação facilitada para o grande público, Lebrun inventou outra saída.
Fez uma palhaçada (derrubou
um copo d'água que estava na minha frente, molhando nós dois) e
deu sua conferência de alto nível,
enquanto sua gestualidade que tinha muita graça prendia a atenção da platéia.
Tive assim a sensação de ouvir
três conferências: uma científica,
uma de alguma divulgação e uma
terceira, gestual, paródia sabe-se
lá de quê, talvez de si mesmo, de
nós mesmos... Paródia em estado
puro: paródia, quem sabe, de nada, só pelo prazer de zombar. "E
zombei de todo aquele que não
zombou de si mesmo", dizia, na
"A Gaia Ciência", Nietzsche, um
de seus filósofos preferidos. É esse
o Lebrun que lembro, para quem
o humor era excelente meio de
romper as imagens feitas, de dissolver o estabelecido nas idéias ou
nos ideais.
Renato Janine Ribeiro, 49, é professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "A Última
Razão dos Reis" (Companhia das Letras), entre outras obras
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