São Paulo, Sexta-feira, 17 de Dezembro de 1999


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MEMÓRIA GÉRARD LEBRUN
A filosofia como humor

RENATO JANINE RIBEIRO
especial para a Folha


Nunca fui aluno de Gérard Lebrun nem conheço bem sua obra, já que meus interesses estiveram, desde muito tempo, voltados para a filosofia política e as interfaces desta com a literatura, a psicologia e a história, ao passo que os dele se concentravam na história da filosofia. Mas durante cerca de dez anos, entre 1976 e 86, tive o prazer de traduzir muitos artigos seus, para o "Jornal da Tarde", e de privar com sua amizade.
O que posso evocar é algo da pessoa. Quem o conhecia tinha a boa surpresa de encontrar alguém sem nenhuma arrogância, o que nem sempre acontece no Brasil com intelectuais de seu porte. Por exemplo, e isso apesar de suas simpatias políticas cada vez mais à direita, que o faziam irritar-se quando alguém atacava Le Pen ou Pasqua, ele era atavicamente democrático no trato das pessoas. O Brasil é uma sociedade muito iníqua -e Lebrun jamais foi cúmplice disso. Recebia em casa as pessoas de quem gostava, misturando as classes sociais. Não creio que nisso houvesse uma convicção política, pelo menos das usuais. Era um jeito de ser, um "ethos".
Também por isso, jamais, pelo menos desde que o conheci, em 1974, ocultou sua preferência (opção? nunca sei) homossexual. É verdade que somente dois anos atrás ele afirmou de público, num jornal (esta Folha), que era homossexual. Contudo, disso não se pode supor que, antes, escondesse ou sequer se calasse a respeito. O armário não era de seu feitio. Suas escolhas, sexuais ou políticas, ele não as guardava escondidas.
Finalmente, o humor: não sei se era um modo de ser ou também uma estratégia. Impressionou-me uma conferência que deu na Universidade de Brasília, há 20 anos, e da qual fui debatedor, depois publicada num livro da editora da UnB ("Hegel", 1981), que está para sair em segunda edição. Ao chegar para a palestra, ele percebeu que a sala estava cheia de estudantes de graduação de outras áreas que não a filosofia, os quais não compreenderiam uma obra difícil como a do pensador da dialética.
Entre uma fala totalmente fechada sobre si mesma e que somente meia dúzia de colegas compreenderia (e que seria a escolha da maior parte dos professores de filosofia) e uma divulgação facilitada para o grande público, Lebrun inventou outra saída. Fez uma palhaçada (derrubou um copo d'água que estava na minha frente, molhando nós dois) e deu sua conferência de alto nível, enquanto sua gestualidade que tinha muita graça prendia a atenção da platéia.
Tive assim a sensação de ouvir três conferências: uma científica, uma de alguma divulgação e uma terceira, gestual, paródia sabe-se lá de quê, talvez de si mesmo, de nós mesmos... Paródia em estado puro: paródia, quem sabe, de nada, só pelo prazer de zombar. "E zombei de todo aquele que não zombou de si mesmo", dizia, na "A Gaia Ciência", Nietzsche, um de seus filósofos preferidos. É esse o Lebrun que lembro, para quem o humor era excelente meio de romper as imagens feitas, de dissolver o estabelecido nas idéias ou nos ideais.


Renato Janine Ribeiro, 49, é professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "A Última Razão dos Reis" (Companhia das Letras), entre outras obras

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