São Paulo, sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

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DISCOS/LANÇAMENTOS

Série "Pra Sempre" estréia remasterizando e reembalando com luxo a rebeldia romântica dos 60

RC abandona o desleixo em reedição de obra

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Roberto Carlos vinha sendo tratado com desleixo nos últimos anos, apesar da imensa popularidade de que continua a gozar e de permanecer sendo um incrível vendedor de discos para a multinacional Sony, em que ele trabalha há 43 anos.
O início da reedição de sua obra em cinco caixas luxuosas de CDs, batizada "Coleção Pra Sempre", desvia a trajetória de descuido que vinha sendo cumprida pela Sony, em CDs sempre relançados, mas nunca remasterizados devidamente, nunca enriquecidos de cuidados gráficos e históricos.
O descaso era legitimado pelo próprio artista, que se abandonara em manias que motivavam chacotas de seus súditos, mas ocultavam problemas psicológicos bem mais profundos. O advento da fase anos 60 da "Coleção Pra Sempre" consolida um crescimento de autoconsciência crítica a partir de um "Rei" que é a cara do país que o tratou como "rei", mas sempre o amou com um misto de paixão e desprezo.
A partir das lindas capinhas reproduzindo em miniatura os LPs de sua fase mais vivaz e luminosa, pode-se agora rever o impacto e a importância da presença de Roberto Carlos não só no imaginário popular nacional, mas também na cultura e na arte do Brasil.
Os 60 foram os anos de aventura do trator RC, os tempos de entrada agressiva num mercado de massa ainda em formação. Quem estava sob o holofote era o "rei do rock'n'roll", um condensado tipo "todos num homem só" e em versão subdesenvolvida de Elvis Presley, Beatles, Beach Boys etc.
Nessa omelete cabia também João Gilberto, e isso o RC de auto-estima esburacada ainda luta por ocultar. Pois está fora dessa primeira etapa seu LP de estréia, "Louco por Você" (61), que já cobiçava o "pop", mas ainda recolhia restos de um início hesitante entre rock e bossa nova, entre Elvis e João, entre o cidadão (marginalizado) do mundo e o capixaba interiorano (marginalizado).
Roberto e a Sony perdem a oportunidade de se reavaliarem na íntegra, seja pela ausência de "Louco por Você", seja pela exclusão no projeto do farto material de faixas avulsas e raras daqueles anos velozes. (Tais ausências são o lado oculto da lua da edição "inédita" do pálido DVD "Pra Sempre - Ao Vivo no Pacaembu", um misto de recuperação e medo de descongelar.)
Só para lembrar, RC começou em 1959 sob a tutela de Carlos Imperial, cantando "João e Maria" e "Fora do Tom", que simultaneamente imitavam e ridicularizavam a bossa de João Gilberto e Tom Jobim. Parecem constranger o RC sóbrio e sério de hoje, mas são quitutes históricos de grande singeleza e sinceridade. Roberto e seu Brasil precisam delas para avançar no percurso de voltarem a se olhar no espelho de modo gentil, generoso e tolerante.
De volta ao que há na caixa, a forja contraditória do rebelde romântico rende os primeiros clássicos autorais (leia ao lado) do que se poderia chamar "roque brasileiro" . Num tempo não tão distante em que a música jovem local só copiava e traduzia versões, "Parei na Contramão" (63) inaugurava a revolução ao lançar a dupla mais coesa da história da música brasileira, formada por Roberto e por sua metade oculta (e genial), Erasmo Carlos.
A rebeldia era adocicada e causava pruridos na vertente militante da MPB -a rígida canção de protesto. Mas, a seu modo talvez tolo e superficial, RC e sua trupe desafiavam como ninguém (ao menos até surgir a faixa de Gaza tropicalista, em 67) um imaginário moralista de início de ditadura militar, de dogmas religiosos, de casamentos indissolúveis. Nascia sob pancadaria uma corajosa e medrosíssima juventude transviada verde-amarela.
O jeito era soterrá-los sob acusações de "alienados", antipatrióticos (seu som seria, supostamente, "estrangeiro"), reacionários. Em parte era verdade, mas os juízos acusatórios vindos da direita e da esquerda foram decisivos para atirar RC dentro daquilo que as críticas "denunciavam". "Quero Que Vá Tudo pro Inferno" (65) resiste como o grito abafado contra o Brasil opressor dos anos 60, um dos momentos de êxtase da história da música daqui.
Sim, soava como grossa alienação -RC seria um artista conservador, estava escrito. Mas quando a coisa degringolou de vez -o Ato Institucional nš 5-, o futuro ídolo romântico sem pingos de amor-próprio renunciou ao iê-iê-iê e desferiu sua grande tacada.
O "Roberto Carlos" de 69, com "Sua Estupidez", "As Curvas da Estrada de Santos" e "As Flores do Jardim da Nossa Casa", era, acredite, um libelo intuitivo contra a escalada da violência, jamais compreendido. Sob a assinatura do negro marginalizado Tim Maia, RC gritava "Não Vou Ficar", antes mesmo que o militarismo decretasse que aos brasileiros só eram permitidas as opções de amar ou deixar o Brasil.
Roberto Carlos ficou.


Coleção Pra Sempre - Anos 60     
Artista: Roberto Carlos
Lançamento: Sony
Quanto: R$ 230, em média (8 CDs)

Ao Vivo no Pacaembu
  
Quanto: R$ 60 (DVD) e R$ 70 (DVD mais CD), em média



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