São Paulo, sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Atualização expõe moral de comédia romântica

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Estamos no terreno do narcisismo, habitado por este Alfie, motorista de limusine metrossexual, mulherengo e irresistível. Alérgico à idéia do convívio afetivo prolongado, seu cotidiano é uma aventura hedonista. Não é estranho então que essa refilmagem do sucesso inglês dos anos 60 parta de um pacote de imagens narcisistas e hedonistas.
Há resíduos de um ar sessentista, representado por decorações e por um frescor de movimentação pelas ruas. Porém o que predomina é um idioma "fashion-artificialista", estilo sintético de rapidez e fluidez que estabelece um conteúdo audiovisual modernizado e embalado para a circulação. Composições meio oníricas, que brincam com batimento de câmera, divisão de tela e cores anabolizadas -procedimentos caros aos comerciais- são abundantes.
Mas qual é a tese coordenada nas engrenagens profundas do filme? Alfie não é outra coisa senão vítima da imagem descartável de seu tempo, 2004. Alma adulterada por uma cultura de reprodução e imposição de imagens de consumo, dessas que estão infiltradas e estruturam o próprio filme, um simulador "consciente" desse plástico todo. E Alfie sofrerá em uma jornada de humanização. Amadurecerá e poderá ser salvo.
Mas há um paradoxo, que está nesse caráter de remake. Ao lado do senso de atualização, há uma urgência, a de soar oportuno: decifrar o homem solteiro e urbano que foi "fabricado" de 66 até aqui. Compreender e tampar o buraco cronológico entre os Alfies, em nome de um "insight". O filme trata Alfie como sintoma humano de modernidade. Temos quase um personagem de planilha. Um padrão sem rosto, espectro representante do tédio, das contradições e do "estar perdido" de um corte sofisticado de sua geração.
Nesse sentido, o filme lembra muito algo como uma peça de pesquisa de mercado. A ordem seria: detectar e entender, como se fosse para, depois, lançar produtos. Tendo-se em vista sempre o fruto dessa operação, esse personagem global e ideal, que tem dentro de si uma harmonização entre certo cinismo e verdade humana superficial: uma química, aliás, tão almejada pelo estatuto da publicidade. O filme torna-se mero reflexo, aparentemente involuntário, do universo cujos dispositivos seriam envenenadores.


Alfie - O Sedutor
Alfie
 
Direção: Charles Shyer
Produção: EUA/Inglaterra, 2004
Com: Jude Law, Marisa Tomei, Susan Sarandon
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Jardim Sul, Tamboré e circuito



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