São Paulo, Terça-feira, 18 de Janeiro de 2000


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ARTES PLÁSTICAS
Nuno Ramos testa os limites da matéria e da obra de arte

Ormuzd Alves/Folha Imagem
Trabalho com vidro fundido moldado em folhas de palmeira e com texto de "Cujo"


JULIANA MONACHESI
free-lance para a Folha


O MAM parece uma cozinha. Caldeirões fervem parafina, óleo é derramado aqui e ali, água e cal são misturadas, vaselina líquida é despejada em vidros soprados. Trata-se da montagem da exposição de Nuno Ramos, artista plástico que, com apenas 39 anos, ganha a partir de hoje uma quase-retrospectiva em um dos mais importantes museus do país.
A obra de Nuno é assim viva. Materiais como terra, sal, breu, vaselina, tecido e vidro são usados nas esculturas, instalações e pinturas em uma busca de fusão das qualidades dos elementos, gerando formas intermediárias.
Mesmo nos gêneros artísticos, a obra de Nuno é uma forma intermediária: as pinturas ficam no limite porque têm peso e volume de escultura, mas mantêm o chassi. É o neoexpressionismo de quando ele despontou no cenário das artes, com o Grupo Casa 7, levado às últimas consequências.
A mostra traz obras selecionadas pelos curadores Alberto Tassinari e Rodrigo Naves, cobrindo mais de uma década na trajetória do artista, e foi exibida no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio, antes de vir para São Paulo. A seguir, leia entrevista que Nuno Ramos concedeu à Folha durante a montagem da exposição, no MAM.

Folha - O crítico Alberto Tassinari escreveu que considerava suas pinturas de 92 em diante de um volume exagerado e que elas marcariam o fim da sua trajetória como pintor. Como você resolveu esse impasse nas novas pinturas?
Nuno Ramos -
Meu trabalho como pintor começa em 88 com aqueles quadros cheios de matéria. Ele vai numa dança bastante boa até a exposição da Raquel (galeria Raquel Arnaud, em São Paulo), em 91. A partir dali, eu fiz o "111", o "Mácula", um monte de outras coisas fora da pintura e acho que eu me desconcentrei um pouco dela. Eu senti esse trabalho de quadro voltar com força naquele quadro (indica a obra sem título, de 98, da coleção Gilberto Chateaubriand).
Acho que é possível falar sim de momentos mais difíceis com esses quadros, tanto que eu nunca os expus autonomamente e dei um tapa depois, sem mexer muito, mas o pouco que eu mexi por causa desse fez eles darem uma nascida. Então, se a previsão está errada, acho que o sentido está bem posto, porque teve um momento mais travado ali, sim.

Folha - São Paulo recebeu ano passado as exposições de César e Arman, nas quais é possível ver alguma familiaridade com seu trabalho. O que você deve ao novo realismo?
Ramos -
Não devo nada, não gosto. Gosto muito do Yves Klein, mas acho os outros um saco. Tem um acúmulo de coisas, mas ali é um acúmulo disforme, não é construído, uma coleção de botões ampliada, não vejo tensão; acho bobo, parado, sem graça. Em relação ao Klein, eu teria de pensar um pouco, mas alguma influência deve haver, porque eu gosto demais.

Folha - Então, no seu trabalho, importa mais a construção do que o acúmulo?
Ramos -
Eu nunca parto de nada pronto, nada que exista. Meu trabalho é uma luta contra a colagem. O difícil nele é não fazer colagem com essa volumetria e com esse número de coisas postas, ou seja, achar alguma forma de continuidade.

Folha - Você já usou o conceito de "forma enfraquecida" para explicar que não gosta que os objetos no seu trabalho tenham muita literalidade. Em trechos do seu livro "Cujo", você diz que, quando uma forma prevalece, ela estraga a obra. Por que isso é um problema?
Ramos -
O que eu noto é o seguinte: quando levanto o quadro e o olho pára num ponto, ele está errado. Aquilo precisa ficar meio sem foco, um pouco pollockianamente, para falar de uma influência, essa sim, profunda. No Pollock a energia é muito intensa, mas disseminada; não tem centro, não tem nó. Então, quando prevalece uma coisa, nos quadros isso é evidente. Nas esculturas também sinto isso: a pedra não pode ser muito pedra. Essa pedra cinza (refere-se ao "Manorá Preto") me dá a maior aflição, acho horrível até que a vaselina escorra e faça a pedra amolecer.

Folha - Todos os seus trabalhos são muito impactantes. Você pode dizer o que pretende provocar com essa visualidade tão exacerbada?
Ramos -
Muitas vezes não é exatamente visualidade. Acho que mesmo nos quadros essa visualidade é muito tátil, quer dizer, tem alguma coisa intermediária também aí. Esse trabalho impressiona talvez pela materialidade. Mas não sei o que eu pretendo... acho que tem alguma coisa da matéria estar no limite de um descontrole, talvez. Eu não gosto de perder o controle, não vejo graça em quebrar aqueles vasos e abrir tudo (referência a "Vaso Ruim").
Todo mundo me fala, como se meu trabalho muitas vezes fosse assim, "ai, que legal, porque tanto faz". Para mim não: tem uma hora que está lindo, aí cai um milímetro e estraga tudo. Eu sou super sensível nesse sentido. Mas acho que o que eu quero é o momento em que a matéria está quase solta. Aí fica bom, talvez seja isso que impressione muitas vezes, é esse momento em que a matéria está um pouco descontrolada.

Folha - Ao escrever sobre sua obra, Lorenzo Mammi afirma ser uma arte sobre a impossibilidade da arte, referindo-se à tentativa de que a pintura seja o próprio gesto, quando este já está ausente, e ao acúmulo de informações nas instalações que termina por gerar um silêncio. A sua nova escultura, "Casco", sobre a empreitada frustrada do navegador Shackelton, resume esse tema da impossibilidade na sua obra?
Ramos -
Acho que esse tema da impossibilidade, não da arte, mas da vida, do luto, do fracasso, é muito interessante. Eu tenho uma identificação um pouco confusa com isso, mesmo com o lado mais negro da cultura brasileira tipo Graciliano Ramos, Mário Peixoto, Goeldi, Iberê, Nelson Cavaquinho. Eu gosto muito desse lado sem carnaval, o lado triste mesmo, quase trágico.
Embora eu também ache que meus quadros são meio violentos, carnavalescos um pouco. Agora me irritam um pouco as feições da cultura brasileira mais... tipo Caetano, Gil, tudo muito reversível em tudo. Acho que tem alguma energia triste para ser captada. Não sei se eu estou captando, mas eu me identifico com isso.
Mas, em geral, as pessoas associam meu trabalho não à impossibilidade da arte, mas à possibilidade da arte, algo afirmativo.
No Shackelton, o que acho bonito é que, mais que um fracasso, a história dele é um elogio à sobrevivência, pois a equipe sobrevive em condições absurdas. Depois, é aquela coisa de viagem: você vai atrás de uma coisa e encontra outra. Quer dizer, eles fazem outra aventura muito mais interessante do que atravessar o pólo.

Folha - Qual a importância dessa exposição no MAM, desse reconhecimento que, ano passado, por exemplo, foi dado apenas a artistas como Franz Weissmann e Lygia Clark?
Ramos -
Não sei dimensionar bem. Acho que a gente não deve ficar muito paralisado com essas coisas, nem diminuir nem aumentar. É um momento de teste para as coisas que eu faço, nesse sentido de sofrer uma alteridade institucional. Isso é meio novo para o trabalho. Eu vou fazer 40 anos em 2000 e pensei muito isso com essa exposição: tem algo de olhar sobre os ombros. Eu tô um pouco olhando para trás e tenho de achar uma medida para não virar uma estátua de sal, para isso ser uma coisa rica para mim.


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