São Paulo, sexta-feira, 18 de janeiro de 2002

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CRÍTICA

Perversão é instrumento para abordar incomunicabilidade

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"Desculpe" , diz o aluno adolescente à professora de piano, depois de ter sido flagrado ao manusear revistas pornográficas. "Desculpar-se por quê?" Por se sentir um porco? Por que os outros fazem com que se sinta um porco?", pergunta ela, com a voz alterada. Humilhado, ele reúne as partituras e deixa a sala.
Ao agredir o menino, porém, o que a professora Erika Kohut (Isabelle Huppert) expõe é a sua própria ferida. Ela se sente um monstro -em aparência e comportamento-, está condenada a uma vida dupla e pervertida, e a culpa é de seus circunstantes.
Em "A Professora de Piano", o diretor austríaco Michael Haneke não faz concessões ao pudor. Num filme em que não há praticamente cenas de nudez, o cineasta consegue ultrapassar os limites da obscenidade e da pornografia. Não é difícil ver se repetirem, nas críticas já publicadas, adjetivos como "indigesto" e "incômodo", além de relatos sobre pessoas que saíram no meio da sessão.
Erika é uma pianista renomada no pequeno e refinado círculo da música erudita em que transita. Especialista em Schubert, ela dá aulas no conservatório de Viena para alunos selecionados em exames disputados e rigorosos.
Por trás de uma vida disciplinada pela dedicação à música, Erika -que não se permite sorrir nunca- esconde uma existência paralela. Voyeur, ela sai à caça de casais transando em lugares públicos, frequenta sex shops, promove sessões de automutilação em casa e coleciona objetos para prática de sadomasoquismo.
Erika tem um relacionamento doentio com a mãe (Annie Girardot), com quem vive num ambiente claustrofóbico e violento.
Até que surge Walter Klemmer (Benoît Magimel), um jovem e bonito estudante de piano. Primeiro, ele se sente atraído por ela por admirar a forma como interpreta Schubert. Esse sentimento, entretanto, se transforma numa obsessão que cresce de forma fulminante na mesma medida em que ela o rejeita e humilha.
Erika, por sua vez, vê em Walter a oportunidade de realizar seu desejo mais secreto -ser ela própria rejeitada, agredida e submetida sexualmente. Ela redige uma carta em que descreve em detalhes a forma como quer ser tratada e entrega-a ao dilacerado Walter. Transtornado, ele se vê diante do dilema de aceitar ou não o jogo proposto como única maneira de concretizar a paixão de ambos.
A perversão carrega o filme, mas Haneke não se dedica a teorizar sobre ela. Mais do que um tema, se torna em suas mãos um instrumento para abordar a incomunicabilidade entre as pessoas. Em especial, entre pessoas encerradas em universos particulares, pequenos infernos pessoais cercados por muros levantados pelo desejo ou pela privação.
Por meio do choque, Haneke parece querer abalar os muros de cada um de seus espectadores. Resta aceitar a invasão, ou fazer como o garoto humilhado do começo deste texto: pedir desculpas e deixar a sala correndo.


A Professora de Piano
La Pianiste
    
Direção: Michael Haneke
Produção: Áustria/França, 2001
Com: Isabelle Huppert, Benoît Magimel
Quando: a partir de hoje no Cineclube DirecTV



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