São Paulo, sexta-feira, 18 de janeiro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIAS

Diretor de "Kiriku e a Feiticeira" lança reunião de seis contos feitos há 12 anos

Fantasia à contraluz

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma breve espiada na biografia do cineasta Michel Ocelot sugere um personagem exótico como os de suas animações. Não gosta de dizer ("é segredo, mas respondo, porque você me perguntou") que nasceu em 1943, na França. Boa parte da infância, passou na África: dos seis aos 12 anos em Guiné.
É da experiência africana que ele acha que vem o "gosto pelas cores" que já se notava em "Kiriku e a Feiticeira", seu primeiro longa. "Ficava na janela olhando as pessoas, vestidas de modo magnífico; tentava pintar a mesma coisa e não conseguia: a realidade era ainda mais bonita."
Tendo desenhado e escrito desde criança, juntar as duas artes na criação de animações parecia natural; porém a aptidão para contar histórias como as de "Príncipes e Princesas", que estréia hoje em São Paulo, veio com o tempo.
"Quanto mais envelheço, mais tenho vontade de contar histórias, e elas vêm mais facilmente. Eu reli histórias que havia escrito há tempos e achei muito ruins. Acho que estou bem melhor agora", diz o cineasta, falando à Folha por telefone, de Paris, onde vive.
Depois do sucesso de "Kiriku" -só na França, atingiu cerca de 1,6 milhão de espectadores-, Ocelot se empenha em corrigir: seus filmes não são para crianças.
Por isso, assim que a repórter se identifica, Ocelot sai perguntando: ""Príncipes e Princesas" vai falar "brasileiro'?". Mostra alívio ao saber que terá versões dubladas e com legendas: na França, o filme foi apresentado somente em matinês, o que limitou seu acesso ao público adulto.
"Se você quer encontrar trabalho em animação, tem de dizer "é para crianças", senão não tem filme", lamenta. "A animação eu queria; as crianças, não. Mas elas caíram sobre mim e as aceito. Eu me dei conta de que, ao me disfarçar de autor infantil, capturo os adultos. Eles não desconfiam e, aos poucos, eu os conquisto."
Assim, ao ver que atingira "pequenos, jovens e velhos" com "Kiriku", desistiu da intenção inicial de fazer de seu segundo longa um filme "francamente adulto".
"Nunca fiz o que não quisesse. O problema é que nem sempre eu tinha dinheiro suficiente para fazer o que queria realmente", explicando porque recusou convites para séries de TV ou tapar os personagens nus de "Kiriku" para vendê-lo a países anglo-saxões.
Aceitou, porém, a sugestão do produtor de reunir, numa mesma fita, seis curtas feitos há 12 anos -exatamente num momento em que o dinheiro andava escasso.
A riqueza visual das seis historietas de "Príncipes e Princesas" não sugere que o uso da técnica de sombras chinesas -os personagens são silhuetas negras, finamente recortadas contra fundos muito coloridos- foi determinado por questão financeira.
"Não tinha dinheiro, mas queria fazer os filmes, então achei a técnica mais barata", admite, rindo, Ocelot. "Agora gosto e, de tempos em tempos, faço outras. O que a gente vê, trabalhando, é um monte de papel, lápis, fita adesiva, nada bonito. Quando acaba, nem a gente acredita. É lindo."
Todas as histórias de "Príncipes e Princesas", como acontecia com "Kiriku", são escritas por Ocelot. "Não gosto de adaptações, esses filmes feitos a partir de romances ou de quadrinhos famosos me desagradam. Quero fazer obras especialmente para o meu meio de expressão. Por outro lado, me aproprio com prazer de contos tradicionais, que não são de ninguém. Pego a idéia de que gosto, jogo o resto fora e crio minha própria história."
A idéia de reprocessar idéias para criar coisas novas está em "Príncipes e Princesas". No filme, as historietas são criadas e encenadas por um menino e uma menina, sob a orientação de um velho técnico, num cinema abandonado, que aparece como uma espécie de refúgio do barulho da cidade, mas também como lugar de "transmissão de saber".
Assim, o que Ocelot mostra na tela é também o seu ofício, como os personagens fazem no filme.
"Eu mostro às crianças meu trabalho. Espero formar, pouco a pouco, uma geração de crianças criativas. Mostrar que existe algo ainda mais interessante do que ver filmes: fazê-los."
A estrutura narrativa segue a dos contos de fadas tradicionais, com direito a fundo moral, mas Ocelot deixa de fora o maniqueísmo. Assim, por exemplo, numa das histórias o menino prefere ficar com a bruxa do que com a princesa.
Defendendo que "um conto é bom quando, no fundo, há algo bastante sério", Ocelot questiona os papéis de homem e mulher na última história, que dá nome ao filme. Por um beijo, o príncipe vira sapo. Sucedem-se outros beijos, que vão transformando o casal em diferentes animais, até que ele vira ela e vice-versa.
"Pensei em uma frase de Simone de Beauvoir: "Não se nasce mulher, torna-se". Cada um aprende um gestual, de homem ou mulher. São coisas impostas."


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