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São Paulo, sábado, 18 de janeiro de 2003

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RODAPÉ

Educar ou ensinar

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Não posso reclamar dos professores que tive, quase todos bons e alguns ótimos: os ruins foram a exceção. Mesmo assim, é difícil contabilizar quanto lhes devo. Vários dentre os que lidavam com cultura tornaram-se meus amigos e, no diálogo que estabelecemos (fora das salas de aula), fui eu que lucrei.
Literatura, filosofia, artes, até mesmo história, são disciplinas que se aprendem mas, a rigor, não se ensinam. Não há, nessas áreas, palestras capazes de competirem com a leitura solitária. O sucesso daquelas se mede pelo número de ouvintes que acorrem, em seguida, à biblioteca.
Talvez a maneira adequada não tanto de ensinar quanto de estimular o aprendizado das humanidades consista em, contrastando desfavoravelmente suas pretensões com o conhecimento do professor, convencer o aluno de sua ignorância e da necessidade, portanto, do trabalho duro.
O melhor professor propriamente dito que tive, porém, deu-me aulas no terceiro colegial, ano do vestibular. Foi um professor de matemática que, constatando que ninguém na classe assimilara nada da trigonometria ensinada no ano anterior, ofereceu-se para nos dar, de graça, um curso noturno suplementar de duas semanas ao qual iria quem quisesse.
Na primeira noite ele desenhou um círculo no quadro-negro, traçou uma tangente, apresentou algumas equações e, quando percebemos, não havia mais um problema de trigonometria que não soubéssemos resolver.
No ano seguinte, esse professor morreu num desastre de automóvel. Ele não me ensinou a pensar nem me revelou os mistérios da alma humana; não me encorajou a combater a opressão ou a ouvir Gustav Mahler; não me aproximou de Deus, não me tornou mais ético, não me deu novos ideais, não iluminou meus caminhos. Me ensinou trigonometria.
Pouco, não? Afinal, não é raro ouvir outros, escolas inteiras de fato, cujo slogan é o de que sua missão não consiste em informar, mas sim em formar os alunos. Comparada a tão elevada meta, o que é a trigonometria ?
Provavelmente muito mais. Porque não se sabe direito como as pessoas se formam, quanto há de genético, qual a contribuição de pais, professores, meios de comunicação. Quem quer que se recorde da própria formação, no entanto, ou tenha acompanhado a de uma criança, deve ter suspeitado que um fator tão importante quanto menosprezado é o convívio de cada qual com seus pares, com gente de sua geração.
Superestima-se a influência dos adultos e das instituições sobre os seres supostamente em idade formativa, e ao mesmo tempo se subestima sua resistência, sua desconfiança e independência.
Ocorre que, sendo o ser humano o que é, poucos são os que, depois de décadas aguentando crianças barulhentas ou adolescentes insuportáveis, gostariam de ser lembrados como uma aparição fugaz, responsável apenas por ter conseguido martelar em algumas cabeças a regra de três ou as normas de concordância.
Nada de grandioso ou heróico nisso: pelo contrário, seria como, na melhor das hipóteses, tornar-se uma daquelas personagens melancólicas do "Amarcord" de Federico Fellini. Assim, o número de professores míngua conforme cresce o de educadores. E se não se pode levá-los a sério quando falam em "formação", convém acreditar neles quando afirmam que não estão veiculando informação.
Tais problemas, ao fim e ao cabo, seriam fáceis de corrigir não fosse uma complicação adicional.
Acostumados que estamos (pelo menos o Primeiro Mundo e a classe média do Terceiro) ao imenso Leviatã tentacular chamado sistema de ensino, perdendo quase sempre de vista sua novidade histórica, deixamos de constatar que se trata não só de um acréscimo recente como de uma instituição que não tem similar nas sociedades pré-modernas.
De todas as grandes inovações dos dois últimos séculos ela é, ademais, a única examinada quase que exclusivamente através de lentes cor-de-rosa. Palavras como "educação", "ensino", "escola", "universidade" parecem ter somente ressonâncias positivas.
E isto, embora até certo ponto justo, encobre dois fatos: o de que a idéia de educar, não de ensinar, permeia hoje em dia todas as dimensões da vida; e o de que as utopias que ainda se quer concretizar são exatamente aquelas que transformariam o mundo num gigantesco internato.

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