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RODAPÉ
Educar ou ensinar
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Não posso reclamar dos professores que tive, quase todos bons e alguns ótimos: os ruins
foram a exceção. Mesmo assim, é
difícil contabilizar quanto lhes devo. Vários dentre os que lidavam
com cultura tornaram-se meus
amigos e, no diálogo que estabelecemos (fora das salas de aula), fui
eu que lucrei.
Literatura, filosofia, artes, até
mesmo história, são disciplinas
que se aprendem mas, a rigor, não
se ensinam. Não há, nessas áreas,
palestras capazes de competirem
com a leitura solitária. O sucesso
daquelas se mede pelo número de
ouvintes que acorrem, em seguida, à biblioteca.
Talvez a maneira adequada não
tanto de ensinar quanto de estimular o aprendizado das humanidades consista em, contrastando desfavoravelmente suas pretensões com o conhecimento do
professor, convencer o aluno de
sua ignorância e da necessidade,
portanto, do trabalho duro.
O melhor professor propriamente dito que tive, porém, deu-me aulas no terceiro colegial, ano
do vestibular. Foi um professor de
matemática que, constatando que
ninguém na classe assimilara nada da trigonometria ensinada no
ano anterior, ofereceu-se para nos
dar, de graça, um curso noturno
suplementar de duas semanas ao
qual iria quem quisesse.
Na primeira noite ele desenhou
um círculo no quadro-negro, traçou uma tangente, apresentou algumas equações e, quando percebemos, não havia mais um problema de trigonometria que não
soubéssemos resolver.
No ano seguinte, esse professor
morreu num desastre de automóvel. Ele não me ensinou a pensar
nem me revelou os mistérios da
alma humana; não me encorajou
a combater a opressão ou a ouvir
Gustav Mahler; não me aproximou de Deus, não me tornou
mais ético, não me deu novos
ideais, não iluminou meus caminhos. Me ensinou trigonometria.
Pouco, não? Afinal, não é raro
ouvir outros, escolas inteiras de
fato, cujo slogan é o de que sua
missão não consiste em informar,
mas sim em formar os alunos.
Comparada a tão elevada meta, o
que é a trigonometria ?
Provavelmente muito mais.
Porque não se sabe direito como
as pessoas se formam, quanto há
de genético, qual a contribuição
de pais, professores, meios de comunicação. Quem quer que se recorde da própria formação, no
entanto, ou tenha acompanhado
a de uma criança, deve ter suspeitado que um fator tão importante
quanto menosprezado é o convívio de cada qual com seus pares,
com gente de sua geração.
Superestima-se a influência dos
adultos e das instituições sobre os
seres supostamente em idade formativa, e ao mesmo tempo se subestima sua resistência, sua desconfiança e independência.
Ocorre que, sendo o ser humano o que é, poucos são os que, depois de décadas aguentando
crianças barulhentas ou adolescentes insuportáveis, gostariam
de ser lembrados como uma aparição fugaz, responsável apenas
por ter conseguido martelar em
algumas cabeças a regra de três ou
as normas de concordância.
Nada de grandioso ou heróico
nisso: pelo contrário, seria como,
na melhor das hipóteses, tornar-se uma daquelas personagens
melancólicas do "Amarcord" de
Federico Fellini. Assim, o número
de professores míngua conforme
cresce o de educadores. E se não
se pode levá-los a sério quando falam em "formação", convém
acreditar neles quando afirmam
que não estão veiculando informação.
Tais problemas, ao fim e ao cabo, seriam fáceis de corrigir não
fosse uma complicação adicional.
Acostumados que estamos (pelo menos o Primeiro Mundo e a
classe média do Terceiro) ao
imenso Leviatã tentacular chamado sistema de ensino, perdendo
quase sempre de vista sua novidade histórica, deixamos de constatar que se trata não só de um
acréscimo recente como de uma
instituição que não tem similar
nas sociedades pré-modernas.
De todas as grandes inovações
dos dois últimos séculos ela é,
ademais, a única examinada quase que exclusivamente através de
lentes cor-de-rosa. Palavras como
"educação", "ensino", "escola",
"universidade" parecem ter somente ressonâncias positivas.
E isto, embora até certo ponto
justo, encobre dois fatos: o de que
a idéia de educar, não de ensinar,
permeia hoje em dia todas as dimensões da vida; e o de que as
utopias que ainda se quer concretizar são exatamente aquelas que transformariam o mundo num
gigantesco internato.
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