|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMENTÁRIO
Cultura precisa de projeto de medula e osso
RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Baseio-me, aqui, em conceitos
de Herbert Marcuse, que considero atuais. A relação entre os fins
culturais e os meios factuais são
raramente harmônicos. Esta tensão se exprime na distinção histórica entre cultura e civilização, segundo a qual "a cultura se relaciona com uma dimensão superior
de autonomia e da realização humana", enquanto a civilização
opera no reino da necessidade,
dentro do qual o homem não é
efetivamente ele mesmo, mas um
outro, um heterônimo a serviço.
Neste sentido, o papel da arte e
da cultura é o de explicitar esta
tensão e não o de reprimi-la. Há,
cada vez mais, tendência de supressão de tal distinção, que implica, na prática, em "renúncia
cultural". E a sociedade, assim,
"tende a tornar-se totalitária", no
dizer correto de Marcuse.
O apagamento das fronteiras
entre cultura e civilização e a instrumentalização daquela para o
mercado e para outros fins é um
dos projetos da civilização tecnológica (às vezes sob inflexões "sociais", como no caso do Brasil carente de hoje), que quer eliminar
os objetivos transcendentes da
cultura; e creio que caberia, então,
possivelmente ao Estado (dinheiro público) resgatá-los.
São, por isso, preocupantes certas declarações da Secretária da
Cultura de São Paulo, Cláudia
Costin. Ela afirmou, em seu discurso de posse, que "a possibilidade de tornar a política cultural
um instrumento de inclusão social é o que mais me encanta". E
depois complementou: "quero,
com o apoio dos funcionários,
ajudar a vencer a guerra contra o
tráfico....".
Aqui, com todo o respeito, se
tem um caso de, sob o amparo de
uma "causa nobre", consensual,
distorcer-se a função do Estado
na área da cultura. O narcotráfico
deve ser combatido pela Justiça,
por Secretários de Segurança e pela polícia (especialistas que podem trazer tranquilidade na
ação). Não faz parte dos fins
transcendentes da cultura o seu
combate, por mais doloroso que
isto soe. E nem mesmo a "inclusão social", tarefa de áreas operacionais de um governo. O que há,
com este traço de programa, é indicação de "exclusão cultural".
Espanta quando diz Costin que
"pretende adotar uma concepção
de política cultural integrada, em
que as diferentes áreas que a integram associam-se para compor
um todo orgânico, fugindo ao que
Edgar Morin chamou de fragmentação do saber e da vida". Aí
está o ponto central: o da eliminação de toda a distinção entre cultura e civilização, da repressão
desta tensão, desta feita, em nome
do Estado.
Outras assertivas da secretária
(que há pouco discutia liquidação
de contratos de empresas estrangeiras de energia com o coordenador da transição, e agora Ministro da Fazenda, Antonio Palocci)
também preocupam: como a de
transformar o Estado de São Paulo em "centro de produção de
"boa" literatura". Não acredito que
ela desconheça que SP é o lugar
onde se gestaram o modernismo,
o concretismo e o tropicalismo. O
Estado dirá então, a partir de agora, o que é boa e má literatura?
Causa apreensão igualmente
quando Costin elogia, a propósito
do incremento do Museu do Imigrante e da riqueza da miscigenação paulista, "a geléia geral de
nossa cultura". A expressão foi
cunhada por Décio Pignatari e
Torquato Neto para denunciar
justamente a ausência de projetos
consistentes e a amorfia da sociedade... Segundo Pignatari, a questão é que alguém deve fazer o "papel de medula e osso, na geléia geral brasileira".
Creio, modestamente, que cabe
à secretária, uma boa economista,
refletir sobre o que lançou e se
abrir para a construção de um
programa democrático e transcendente -de medula e osso e de
longo prazo- para a cultura de
São Paulo, sem o qual não pode
fazer qualquer administração.
Régis Bonvicino é poeta, autor, entre
outros, de "Hilo de Piedra" (Espanha,
2002), "Lindero Nuevo Vedado" (Edições
Quasi, Portugal, 2002) e co-editor da revista "Sibila"
Texto Anterior: Estado fará "pacote" de eventos grátis dia 25 Próximo Texto: Moda: Quarto Amni Hot Spot é o mais comercial Índice
|