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ANÁLISE
Sambas de Bezerra antecederam o hip hop
HAROLDO COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Calou-se uma voz do morro.
Bezerra da Silva, à moda de
Zé Ketti, sempre pôde dizer: "Eu
sou o samba, a voz do morro sou
eu mesmo, sim senhor".
Foi sua opção cantar lances da
vida na Baixada Fluminense, e
nos morros cariocas fez com a autoridade de quem está "por dentro", no sentido mais literal da expressão.
"Sambandido", disseram uns,
samba de bandido, disseram outros, sem atinar para o fato de que
Bezerra da Silva foi antecedente
do hip hop, se não no ritmo, com
certeza na temática.
O que sempre caraterizou as
composições de Bezerra, além do
retrato falado das situações insólitas e inusitadas, foi o humor. Pessoalmente ele era engraçado e
mordaz (se Leonardo Da Vinci,
porque não posso dar três ou quatro?...), com jeito sério ele dizia
poucas, ou muitas, e boas. Sua
malandragem era para uso externo, sempre trabalhou muito e
abriu seu espaço na selva da mídia
com talento e competência.
No início foi o pandeiro e outros
instrumentos de percussão. Todos tocados com precisão profissional, o que fazia a alegria dos
maestros e dos técnicos dos estúdios de gravação. A levada de Bezerra da Silva lembrava o mestre
Jackson do Pandeiro, a quem ele
venerava com entusiasmo absoluto.
Foi adquirindo experiência e
ousadia até que conseguiu ser ouvido como cantor, que trazia um
balanço muito pessoal, tanto
quanto os sambas que cantava.
Tão diferentes que assustavam à
primeira audição. Eram narrativas pouco comuns e muito distantes do que estava em voga naquele momento. Estamos falando
do final dos anos 70.
Até emplacar seu primeiro disco, teve de lutar muito, o que não
é nenhuma novidade, mas nem
por isso ele reformulou seus conceitos nem os recados que pretendia dar. Crítico implacável do sistema que exclui, Bezerra da Silva
passou a ser cult, antes mesmo
que a palavra virasse moda.
Letras populares
A linguagem usada nas suas
composições era aquela cultivada
nas tendinhas, nas biroscas e nos
terreiros de umbanda, enfim, onde o povo está. A identificação foi
total, e isto é um dado importante
para ter a dimensão do velho Bezerra.
Sua visão não era folclórica,
nem forçava as tintas para parecer
diferente. Tanto é assim que o público majoritariamente consumidor da sua obra era aquele que Bezerra flagrava nas suas músicas.
Era a prova definitiva da sua vocação do artista que emerge do seu
meio.
Seu olhar desvendava, com poesia, as agruras da vida dos estigmatizados, dos que são postos à
margem, dos que têm muito a dizer e poucos querem escutar, porque já formaram o seu juízo com
base no "ouvi dizer".
Revelações
Artista eminentemente popular, com raízes nordestinas que
sempre avalizaram o seu comportamento, não só cantou como fez
cantar. Descobriu e estimulou dezenas de compositores que sabiam do que estavam falando e
que, felizmente, encontraram na
voz de Bezerra o alto-falante para
suas verdades.
O samba perde Bezerra da Silva,
figura ímpar em nossa música popular, que soube como poucos ser
com toda autoridade a voz do
morro.
Haroldo Costa é jornalista, historiador,
produtor cultural e autor de "100 Anos
de Carnaval no Rio de Janeiro", publicado pela editora Irmãos Vitale
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