São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 2005

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ANÁLISE

Sambas de Bezerra antecederam o hip hop

HAROLDO COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Calou-se uma voz do morro. Bezerra da Silva, à moda de Zé Ketti, sempre pôde dizer: "Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor".
Foi sua opção cantar lances da vida na Baixada Fluminense, e nos morros cariocas fez com a autoridade de quem está "por dentro", no sentido mais literal da expressão.
"Sambandido", disseram uns, samba de bandido, disseram outros, sem atinar para o fato de que Bezerra da Silva foi antecedente do hip hop, se não no ritmo, com certeza na temática.
O que sempre caraterizou as composições de Bezerra, além do retrato falado das situações insólitas e inusitadas, foi o humor. Pessoalmente ele era engraçado e mordaz (se Leonardo Da Vinci, porque não posso dar três ou quatro?...), com jeito sério ele dizia poucas, ou muitas, e boas. Sua malandragem era para uso externo, sempre trabalhou muito e abriu seu espaço na selva da mídia com talento e competência.
No início foi o pandeiro e outros instrumentos de percussão. Todos tocados com precisão profissional, o que fazia a alegria dos maestros e dos técnicos dos estúdios de gravação. A levada de Bezerra da Silva lembrava o mestre Jackson do Pandeiro, a quem ele venerava com entusiasmo absoluto.
Foi adquirindo experiência e ousadia até que conseguiu ser ouvido como cantor, que trazia um balanço muito pessoal, tanto quanto os sambas que cantava. Tão diferentes que assustavam à primeira audição. Eram narrativas pouco comuns e muito distantes do que estava em voga naquele momento. Estamos falando do final dos anos 70.
Até emplacar seu primeiro disco, teve de lutar muito, o que não é nenhuma novidade, mas nem por isso ele reformulou seus conceitos nem os recados que pretendia dar. Crítico implacável do sistema que exclui, Bezerra da Silva passou a ser cult, antes mesmo que a palavra virasse moda.

Letras populares
A linguagem usada nas suas composições era aquela cultivada nas tendinhas, nas biroscas e nos terreiros de umbanda, enfim, onde o povo está. A identificação foi total, e isto é um dado importante para ter a dimensão do velho Bezerra.
Sua visão não era folclórica, nem forçava as tintas para parecer diferente. Tanto é assim que o público majoritariamente consumidor da sua obra era aquele que Bezerra flagrava nas suas músicas. Era a prova definitiva da sua vocação do artista que emerge do seu meio.
Seu olhar desvendava, com poesia, as agruras da vida dos estigmatizados, dos que são postos à margem, dos que têm muito a dizer e poucos querem escutar, porque já formaram o seu juízo com base no "ouvi dizer".

Revelações
Artista eminentemente popular, com raízes nordestinas que sempre avalizaram o seu comportamento, não só cantou como fez cantar. Descobriu e estimulou dezenas de compositores que sabiam do que estavam falando e que, felizmente, encontraram na voz de Bezerra o alto-falante para suas verdades.
O samba perde Bezerra da Silva, figura ímpar em nossa música popular, que soube como poucos ser com toda autoridade a voz do morro.


Haroldo Costa é jornalista, historiador, produtor cultural e autor de "100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro", publicado pela editora Irmãos Vitale


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