São Paulo, quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

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MARCELO COELHO

Soldados inocentes, mas nem tanto

Dá para desanimar qualquer um. Todo mundo sabe que "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola, é um libelo contra a Guerra do Vietnã: soldados idiotas surfando na zona de combate, aldeias paupérrimas sendo incendiadas, o vôo dos helicópteros ao som da "Cavalgada das Valquírias", não há nada nesse filme que não tenha a marca da ironia, do inconformismo e da denúncia.
E não é que na Guerra do Golfo, em 1991, mostravam esse filme para os soldados americanos que se preparavam para embarcar rumo ao Kuwait? É o que vemos em "Soldado Anônimo", filme de Sam Mendes que estreou recentemente em São Paulo. Aos gritos, com latas de cerveja na mão, os recrutas vibram na mais sanguinária estupidez patriótica. Aplaudem e uivam de alegria, daquele jeito que virou moda entre adolescentes, a cada escola vietnamita bombardeada, a cada jato de napalm.
Não é que sejam todos débeis mentais. "Soldado Anônimo" se baseia no livro autobiográfico de Anthony Swofford, um fuzileiro naval que lia Camus enquanto esperava o momento de atacar o inimigo. Um de seus camaradas no front é suficientemente politizado para apontar os motivos econômicos da guerra: afirma que estão todos ali para assegurar o fornecimento de petróleo para a economia americana.
O argumento do soldado Troy (Peter Sarsgaard) recebe, de resto, uma interpretação visual impressionante por parte do diretor, quando o pelotão americano, depois de semanas de imobilidade num deserto plano, escaldante e branco, repentinamente se vê quase que submerso num verdadeiro dilúvio de petróleo. Em sua retirada, os iraquianos haviam incendiado oleodutos e a fumaça que se forma acaba se condensando em chuva negra e lama inflamável. "Não era isso o que vocês queriam?"
Feitas as exceções de praxe, até mesmo os chefes do pelotão são razoáveis, inteligentes, irônicos. O sargento Sykes (Jamie Foxx, Oscar de melhor ator em 2005 por "Ray") desliza pelo absurdo da guerra sem perder nunca a elegância, o carisma e o senso de justiça. Poderia ter sido um bom revendedor de automóveis. O problema, diz ele num momento confidencial, "é que eu adoro este trabalho"; "I love this job".
Swoff, o protagonista e narrador do filme (Jake Gyllenhall), não está longe de ter o mesmo sentimento. Pelo menos, em determinada fase de seu treinamento, ele se descobre viciado em atirar. É raro que erre o alvo; natural que deseje ter esse talento recompensado e que se exaspere com a inação, numa guerra em que o confronto com o inimigo é sempre adiado.
No filme de Sam Mendes, assim, as peças individuais são mais inteligentes do que o sistema em seu conjunto. Como em toda guerra, é claro, os mecanismos da ideologia patriótica e da rotina militar se encarregam, entretanto, de brutalizar o ser humano, de reduzi-lo a um instrumento cego nas mãos dos comandantes.
A novidade apresentada em "Soldado Anônimo" é que esse instrumento está ficando obsoleto. Na Guerra do Golfo, o uso de mísseis de alta precisão diminuiu a importância da presença física dos soldados e, em especial, a dos "snipers", os atiradores de elite como Swoff e Troy.
Daí o caráter elegíaco e ambíguo deste filme. Por um lado, os personagens de "Soldado Anônimo" não são inocentes. Alistaram-se como voluntários. Querem matar "o inimigo" e se frustram quando isso não acontece. Como toda horda masculina, estão a um passo de massacrar o que encontrarem pela frente.
Por outro lado, continuam tão ou mais puros do que antes: vítimas psicológicas do belicismo americano, não cometem atos de covardia nem derramam o sangue de inocentes.
Assistimos a "Soldado Anônimo" lamentando o que a guerra é capaz de infligir a soldados e civis; mas também lamentando o declínio de uma nobre profissão...
A ambigüidade seria superada se o filme mostrasse melhor de que modo uma pessoa tão "normal" quanto Swoff resolveu se alistar no Exército. No documentário "Farenheit 11 de Setembro", Michael Moore mostrava de que modo os jovens dos lugares mais pobres e sem perspectivas dos Estados Unidos acabam sendo atraídos para o serviço militar. Em "Soldado Anônimo", o narrador explicitamente se recusa a fornecer informações mais detalhadas sobre seu ambiente familiar e social. Sugere-as, apenas: alcoolismo, pobreza, hospitais psiquiátricos aparecem de relance. Swoff não quer, de todo modo, se fazer de vítima.
Desse modo, o narrador passa por intensa provação, por violentas experiências, aprende muito com elas, mas ao mesmo tempo parece incapaz de introspecção, de conflito interior.
Será isto um defeito de "Soldado Anônimo"? Creio que não. Talvez seja a marca de um realismo muito grande por parte de Sam Mendes: o filme parece sugerir que, para Swoff, a Guerra do Golfo nada mais foi do que um filme também.
A idéia de que a vida americana tem como que um déficit de experiência não é estranha aos outros filmes do diretor, como "Beleza Americana" e "Estrada para Perdição": é como se cada nova geração se encarregasse de preencher o vazio, a frustração dos pais e avós.
Em "Soldado Anônimo" isto fica especialmente claro: da Guerra da Coréia ao Vietnã, e do Vietnã ao Kuwait, novos soldados estão a procurar o sentido da guerra anterior, a que seus pais tinham vivido. E, de Bush pai a Bush filho, como num "blockbuster" de verdade, os tiros que não foram dados no Iraque em 91 ficaram para a parte 2.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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