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MARCELO COELHO
Soldados inocentes, mas nem tanto
Dá para desanimar qualquer
um. Todo mundo sabe que
"Apocalipse Now", de Francis
Ford Coppola, é um libelo contra
a Guerra do Vietnã: soldados
idiotas surfando na zona de combate, aldeias paupérrimas sendo
incendiadas, o vôo dos helicópteros ao som da "Cavalgada das
Valquírias", não há nada nesse
filme que não tenha a marca da
ironia, do inconformismo e da denúncia.
E não é que na Guerra do Golfo,
em 1991, mostravam esse filme
para os soldados americanos que
se preparavam para embarcar rumo ao Kuwait? É o que vemos em
"Soldado Anônimo", filme de
Sam Mendes que estreou recentemente em São Paulo. Aos gritos,
com latas de cerveja na mão, os
recrutas vibram na mais sanguinária estupidez patriótica.
Aplaudem e uivam de alegria,
daquele jeito que virou moda entre adolescentes, a cada escola
vietnamita bombardeada, a cada
jato de napalm.
Não é que sejam todos débeis
mentais. "Soldado Anônimo" se
baseia no livro autobiográfico de
Anthony Swofford, um fuzileiro
naval que lia Camus enquanto
esperava o momento de atacar o
inimigo. Um de seus camaradas
no front é suficientemente politizado para apontar os motivos
econômicos da guerra: afirma
que estão todos ali para assegurar
o fornecimento de petróleo para a
economia americana.
O argumento do soldado Troy
(Peter Sarsgaard) recebe, de resto,
uma interpretação visual impressionante por parte do diretor,
quando o pelotão americano, depois de semanas de imobilidade
num deserto plano, escaldante e
branco, repentinamente se vê
quase que submerso num verdadeiro dilúvio de petróleo. Em sua
retirada, os iraquianos haviam
incendiado oleodutos e a fumaça
que se forma acaba se condensando em chuva negra e lama inflamável. "Não era isso o que vocês
queriam?"
Feitas as exceções de praxe, até
mesmo os chefes do pelotão são
razoáveis, inteligentes, irônicos. O
sargento Sykes (Jamie Foxx, Oscar de melhor ator em 2005 por
"Ray") desliza pelo absurdo da
guerra sem perder nunca a elegância, o carisma e o senso de justiça. Poderia ter sido um bom revendedor de automóveis. O problema, diz ele num momento
confidencial, "é que eu adoro este
trabalho"; "I love this job".
Swoff, o protagonista e narrador do filme (Jake Gyllenhall),
não está longe de ter o mesmo
sentimento. Pelo menos, em determinada fase de seu treinamento, ele se descobre viciado em atirar. É raro que erre o alvo; natural que deseje ter esse talento recompensado e que se exaspere
com a inação, numa guerra em
que o confronto com o inimigo é
sempre adiado.
No filme de Sam Mendes, assim,
as peças individuais são mais inteligentes do que o sistema em seu
conjunto. Como em toda guerra,
é claro, os mecanismos da ideologia patriótica e da rotina militar
se encarregam, entretanto, de
brutalizar o ser humano, de reduzi-lo a um instrumento cego nas
mãos dos comandantes.
A novidade apresentada em
"Soldado Anônimo" é que esse
instrumento está ficando obsoleto. Na Guerra do Golfo, o uso de
mísseis de alta precisão diminuiu
a importância da presença física
dos soldados e, em especial, a dos
"snipers", os atiradores de elite
como Swoff e Troy.
Daí o caráter elegíaco e ambíguo deste filme. Por um lado, os
personagens de "Soldado Anônimo" não são inocentes. Alistaram-se como voluntários. Querem matar "o inimigo" e se frustram quando isso não acontece.
Como toda horda masculina, estão a um passo de massacrar o
que encontrarem pela frente.
Por outro lado, continuam tão
ou mais puros do que antes: vítimas psicológicas do belicismo
americano, não cometem atos de
covardia nem derramam o sangue de inocentes.
Assistimos a "Soldado Anônimo" lamentando o que a guerra é
capaz de infligir a soldados e civis;
mas também lamentando o declínio de uma nobre profissão...
A ambigüidade seria superada
se o filme mostrasse melhor de
que modo uma pessoa tão "normal" quanto Swoff resolveu se
alistar no Exército. No documentário "Farenheit 11 de Setembro",
Michael Moore mostrava de que
modo os jovens dos lugares mais
pobres e sem perspectivas dos Estados Unidos acabam sendo
atraídos para o serviço militar.
Em "Soldado Anônimo", o narrador explicitamente se recusa a
fornecer informações mais detalhadas sobre seu ambiente familiar e social. Sugere-as, apenas: alcoolismo, pobreza, hospitais psiquiátricos aparecem de relance.
Swoff não quer, de todo modo, se
fazer de vítima.
Desse modo, o narrador passa
por intensa provação, por violentas experiências, aprende muito
com elas, mas ao mesmo tempo
parece incapaz de introspecção,
de conflito interior.
Será isto um defeito de "Soldado Anônimo"? Creio que não.
Talvez seja a marca de um realismo muito grande por parte de
Sam Mendes: o filme parece sugerir que, para Swoff, a Guerra do
Golfo nada mais foi do que um
filme também.
A idéia de que a vida americana tem como que um déficit de
experiência não é estranha aos
outros filmes do diretor, como
"Beleza Americana" e "Estrada
para Perdição": é como se cada
nova geração se encarregasse de
preencher o vazio, a frustração
dos pais e avós.
Em "Soldado Anônimo" isto fica especialmente claro: da Guerra
da Coréia ao Vietnã, e do Vietnã
ao Kuwait, novos soldados estão
a procurar o sentido da guerra
anterior, a que seus pais tinham
vivido. E, de Bush pai a Bush filho, como num "blockbuster" de
verdade, os tiros que não foram
dados no Iraque em 91 ficaram
para a parte 2.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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