São Paulo, sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

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Cinema/Estréias - Crítica/"O Caçador de Pipas"

Dramalhão e discurso pró-EUA dominam novo filme de Forster

Em "O Caçador de Pipas", relato do autor Khaled Hosseini é adaptado aos pressupostos da ideologia do governo Bush

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Com 8 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, dos quais mais de 1 milhão só no Brasil, o sucesso do romance "O Caçador de Pipas", de Khaled Hosseini, publicado apenas dois anos após o 11 de Setembro, não consiste em mero interesse súbito pela literatura afegã e seus tipos simples submetidos à fúria fundamentalista. A transposição bastante rápida do livro para o cinema a cargo do "pau pra toda obra" Marc Forster torna mais transparente a operação de sedução mental do relato oportunista de Hosseini ao revelar sua matriz ideológica.
O núcleo da história é, supostamente, a amizade entre dois garotos, Amir e Hassan. O primeiro, filho de um rico empresário, parte para os EUA deixando para trás Hassan, um garoto pobre de outra etnia, criado por seu pai. Sua moral é que laços verdadeiramente humanos superam todas as formas de diferenças (materiais, sociais ou políticas).
Enquanto se atém ao tempo da infância, Forster tira todo o proveito desse artifício romanesco, estabelecendo inevitáveis nexos de simpatia e de identificação da platéia com os dois garotos, que levam uma vida razoavelmente pacífica na Cabul dos anos 70, onde o máximo de desafio na vida em que levam é vencer uma competição anual de pipas.
O Afeganistão daqueles anos, recriado em filmagens na China, aparece em cores orientalizadas, com seu povo pacífico e feliz e suas feiras cheias de sons e cores exóticos.
Neste preâmbulo, o filme chega a surpreender ao adotar outra língua que não o inglês e atores de outras origens étnicas num esforço de representação realista típico da era de reconhecimento da diversidade.
No entanto, quando precisa abandonar tal ordem para introduzir o conflito, livro e filme perdem o controle da medida e se convertem em dramalhões altamente suspeitos.
A ruptura entre os amigos Amir e Hassan é emocionalmente empalidecida pela entrada em cena dos verdadeiros vilões, primeiro os russos, durante a invasão soviética no fim dos anos 70, depois o Taleban, com os resultados catastróficos que todos sabemos.
Com tais vilões em cena, ganha evidência a adequação do relato aos pressupostos da ideologia Bush.

Maniqueísmo ingênuo
A demonização do fundamentalismo, mesmo que se justifique pela carga de barbárie introduzida pela radicalidade do Taleban, esconde o outro lado da moeda: o Ocidente, os EUA em particular, aparece como oásis ensolarado, posto avançado da civilização, numa operação maniqueísta difícil de admirar sem se tornar refém da mais banal ingenuidade.
No filme, esta operação abandona as nuances humanistas do relato de Khaled Hosseini e adquire a força de um tanque de guerra. Em sua peripécia de retorno ao Afeganistão para salvar um inocente, por exemplo, Amir revalida argumentos que justificariam a invasão do governo Bush em sua fúria bélica.
Em outros tempos, o cinema americano foi menos sutil com heróis da estirpe de Rambo em suas estratégias de vingança simbólica. "O Caçador de Pipas" é apenas um novo disfarce para uma retórica velha de guerra.


O CAÇADOR DE PIPAS
Direção:
Marc Forster
Produção: EUA, 2007
Com: Khalid Abdalla, Atossa Leoni, Shaun Toub
Onde: estréia hoje no Cine Bombril, Iguatemi Cinemark, HSBC Belas Artes, Tamboré 8 e circuito
Avaliação: ruim


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