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Cinema/Estréias - Crítica/"O Caçador de Pipas"
Dramalhão e discurso pró-EUA dominam novo filme de Forster
Em "O Caçador de Pipas", relato do autor Khaled Hosseini é adaptado aos pressupostos da ideologia do governo Bush
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Com 8 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo,
dos quais mais de 1 milhão só
no Brasil, o sucesso do romance
"O Caçador de Pipas", de Khaled Hosseini, publicado apenas
dois anos após o 11 de Setembro, não consiste em mero interesse súbito pela literatura afegã e seus tipos simples submetidos à fúria fundamentalista. A
transposição bastante rápida
do livro para o cinema a cargo
do "pau pra toda obra" Marc
Forster torna mais transparente a operação de sedução mental do relato oportunista de
Hosseini ao revelar sua matriz
ideológica.
O núcleo da história é, supostamente, a amizade entre dois
garotos, Amir e Hassan. O primeiro, filho de um rico empresário, parte para os EUA deixando para trás Hassan, um garoto pobre de outra etnia, criado por seu pai. Sua moral é que
laços verdadeiramente humanos superam todas as formas
de diferenças (materiais, sociais ou políticas).
Enquanto se atém ao tempo
da infância, Forster tira todo o
proveito desse artifício romanesco, estabelecendo inevitáveis nexos de simpatia e de
identificação da platéia com os
dois garotos, que levam uma vida razoavelmente pacífica na
Cabul dos anos 70, onde o máximo de desafio na vida em que
levam é vencer uma competição anual de pipas.
O Afeganistão daqueles anos,
recriado em filmagens na China, aparece em cores orientalizadas, com seu povo pacífico e
feliz e suas feiras cheias de sons
e cores exóticos.
Neste preâmbulo, o filme
chega a surpreender ao adotar
outra língua que não o inglês e
atores de outras origens étnicas
num esforço de representação
realista típico da era de reconhecimento da diversidade.
No entanto, quando precisa
abandonar tal ordem para introduzir o conflito, livro e filme
perdem o controle da medida e
se convertem em dramalhões
altamente suspeitos.
A ruptura entre os amigos
Amir e Hassan é emocionalmente empalidecida pela entrada em cena dos verdadeiros
vilões, primeiro os russos, durante a invasão soviética no fim
dos anos 70, depois o Taleban,
com os resultados catastróficos
que todos sabemos.
Com tais vilões em cena, ganha evidência a adequação do
relato aos pressupostos da
ideologia Bush.
Maniqueísmo ingênuo
A demonização do fundamentalismo, mesmo que se justifique pela carga de barbárie
introduzida pela radicalidade
do Taleban, esconde o outro lado da moeda: o Ocidente, os
EUA em particular, aparece como oásis ensolarado, posto
avançado da civilização, numa
operação maniqueísta difícil de
admirar sem se tornar refém da
mais banal ingenuidade.
No filme, esta operação
abandona as nuances humanistas do relato de Khaled Hosseini e adquire a força de um tanque de guerra.
Em sua peripécia de retorno
ao Afeganistão para salvar um
inocente, por exemplo, Amir
revalida argumentos que justificariam a invasão do governo
Bush em sua fúria bélica.
Em outros tempos, o cinema
americano foi menos sutil com
heróis da estirpe de Rambo em
suas estratégias de vingança
simbólica. "O Caçador de Pipas" é apenas um novo disfarce
para uma retórica velha de
guerra.
O CAÇADOR DE PIPAS
Direção: Marc Forster
Produção: EUA, 2007
Com: Khalid Abdalla, Atossa Leoni, Shaun Toub
Onde: estréia hoje no Cine Bombril, Iguatemi Cinemark, HSBC Belas Artes,
Tamboré 8 e circuito
Avaliação: ruim
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