São Paulo, segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Um museu para a memória chilena

FERNANDO SERAPIÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Chile é o país que possui a mais festejada arquitetura contemporânea do continente. É uma espécie de Brasil dos anos de 1950. Por incrível que pareça, sem esquecer razões econômicas, isso ocorre por causa de uma faculdade inovadora. Trata-se da Escola de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Chile: ao colocar em cheque os parâmetros da educação preexistente, resultou em uma geração de originalidade ímpar. Entre os expoentes, podemos citar Mathias Klotz, Alejandro Aravena, Smiljan Radic e Sebastián Irarrázaval.
Sem a assinatura de nenhum deles, foi inaugurado o mais aguardado edifício chileno do momento. Trata-se do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, financiado pelo governo. O espaço é dedicado aos abusos cometidos durante a ditadura de Augusto Pinochet. Mais violento do que o paralelo brasileiro, entre mortos e desaparecidos, são contabilizadas mais de 3 mil vítimas do regime de força chileno. E por que a ansiedade? O museu é a menina dos olhos da presidente Michelle Bachelet, que deixa o cargo em março.
Seu envolvimento não é por pouco: ela e sua mãe foram presas e torturadas pela ditadura. Se não bastasse, seu pai -um general da força aérea- morreu em seção de tortura. Planejado desde o primeiro ano do governo Bachelet -e sem que nenhum detalhe escapasse de sua decisão pessoal- o museu foi construído a toque de caixa.

Brasileiros em Santiago
O projeto foi escolhido por concurso internacional de arquitetura (com concorrentes anônimos). Dentre as mais de 50 propostas, o vencedor foi uma equipe paulista formada por Mario Figueroa, Lucas Ferh e Carlos Dias. Apesar de localizado no centro de Santiago, trata-se de um projeto brasileiro por excelência. Tal afirmação leva em conta um conceitual: o museu tem desconcertante simplicidade de organização dos espaços.
Trata-se de elemento típico da arquitetura moderna brasileira -de Oscar Niemeyer a Vilanova Artigas- e que muitas vezes é deixado em segundo plano, camuflado por curvas ou malabarismos estruturais.
A imagem mais forte do museu, neste sentido, é a de uma caixa de cobre que flutua sobre o vazio. Semelhanças com referências tão díspares como o Masp, de Lina Bo Bardi, ou o Mube, de Mendes da Rocha, são evidentes. O museu propriamente dito fica dentro desta caixa. São quatro andares constituídos como um grande ambiente sem sequência expositiva linear. "Uma arca, onde se pode depositar todas as reminiscências da história chilena", escreveram os autores.
O volume possui 80 metros de comprimento por 18 de largura e vence um vão de pouco mais de 50 metros.
Batizada pelos autores de "barra", este bloco é apoiado em quatro pontos e estruturado por peças metálicas. Se na época do concurso a "barra" possuía uma estrutura regular em treliça, a obra foi executada com desenho irregular. À primeira vista, a mudança pode parecer citação sutil aos ângulos agudos do Museu do Holocausto de Berlim, de Daniel Libeskind. Mas quem disse que também não pode demostrar aproximação aos métodos pouco ortodoxos da PUC do Chile?
Em contraponto à "barra", a administração, a área de eventos e serviços estão localizados no subsolo, local onde fica a praça de acesso que ajuda o edifício a flutuar. O que o torna contemporâneo, além da materialidade, é o discurso da permeabilidade urbana, da quadra que pode ser percorrida pelo cidadão. A valorização das virtudes da cidade tem relação direta com teses acadêmicas -os três arquitetos brasileiros são professores universitários.
O museu de Santiago é o mais representativo projeto da carreira dos brasileiros (Figueroa nasceu no Chile, mas está radicado no Brasil há mais de 30 anos). Eles estão na faixa dos 45 anos de idade, ou seja, são contemporâneos dos colegas chilenos da PUC (o desenho de Irarrázaval para o museu ficou em segundo lugar). O trio pertence a uma geração que busca se expressar através dos concursos locais, raramente executados.
Por aqui, o poder pós-ditadura não se materializou com espaços -preferiu gastar dinheiro com propaganda e base política. Como saída, eles ajudaram a perpetuar o discurso chileno pelo repúdio à violação dos direitos humanos.

FERNANDO SERAPIÃO é arquiteto e editor-executivo da revista "Projeto Design"


Texto Anterior: Música: Roberta Campos toca no Sesc Pompeia
Próximo Texto: 28ª São Paulo Fashion Week: Osklen e Rosa Chá apostam em inverno de vanguarda
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.