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OPINIÃO
Com medo da liberdade
TVs por assinatura deixaram de ser meras repetidoras de conteúdo estrangeiro, geram empregos e trazem inovação
LUIZ FERNANDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao ler as declarações de Marco Aurélio Garcia, lembrei da
anedota que circulava na falecida República Democrática Alemã. Sabendo que toda correspondência seria lida por censores, um operário que conseguiu
emprego na Sibéria combina
com os amigos: "Vamos criar
um código. Se uma carta estiver
escrita em tinta azul, o que ela
diz é verdade; se estiver escrita
em vermelho, tudo é mentira".
Um mês depois, os amigos
recebem uma carta escrita em
azul, que diz: "Tudo aqui é maravilhoso, o comércio vive
cheio, a comida é abundante, os
lares aquecidos, os cinemas
exibem filmes do Ocidente, há
uma atmosfera de liberdade e
justiça social por toda parte. O
único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha".
A menção à inexistência da
tinta mostra que a carta deveria
ter sido escrita em vermelho.
Isso produz o efeito da verdade:
era a única forma de transmitir
a mensagem verdadeira naquela condição de censura.
Pegando carona na anedota,
podemos dizer que a "tinta"
usada nas declarações do professor -"processo de dominação"- são termos que maquiam nossa percepção da situação em vez de nos permitir
pensá-la, servem para mascarar e manter nossa precariedade audiovisual mais profunda.
A libertação evocada por
Garcia transforma-se na melhor de todas as salvaguardas
contra a liberdade: "A esquerda
precisa reagir à difusão de valores capitalistas", diz. Em que a
TV a cabo incomoda este governo? Assiste quem paga, e o assinante tem o livre-arbítrio de
cancelar sua assinatura. Questões mais urgentes nas telecomunicações, como os desdobramentos dos canais digitais
das TVs, seguem esquecidas em
alguma gaveta do Planalto.
A TV a cabo representa uma
elite de cerca de 5%, enquanto a
maioria da população é arrastada pelos conteúdos [alguns até
mais nocivos que os estrangeiros] das TVs abertas, que se
abstêm de abraçar uma função
maior: a formação de cidadãos,
e não só de fiéis consumidores.
Mas isto pouco importa ao
assessor, seu negócio é o controle do imaginário brasileiro
via TVs a cabo, quem diria.
É preciso olhar o mundo.
Proibir, não. Nossa TV por assinatura nasceu sob influência de
um modelo monopolista da TV
aberta e da importação de produtos culturais dos grandes
"players" do cenário internacional. Para alterar a restrição
dos 49% no máximo de participação estrangeira nas concessões de TV, é necessário mudar
a lei que as regula.
A não ser que Garcia considere que, diante da crescente monopolização das TVs pagas,
monopólio por monopólio, o de
Estado seja melhor. Mas o assessor escolheu virar suas baterias contra os ideais democráticos, tentando restringir o livre
fluxo da informação, como
acontece nos regimes totalitários, onde o primeiro inimigo
passa a ser a imprensa livre.
Essa mesma imprensa foi
quem revelou ao país seus verdadeiros pensamentos ao flagrar seu gesto obsceno [o top-top do Fradinho, do Henfil],
captado por uma câmera "indiscreta", espalhando sua chocante reação debochada às primeiras investigações sobre o
trágico acidente com o avião da
TAM. Em vez de trabalhar para
o aprimoramento da indústria
cultural brasileira, Garcia opta
pelo mais fácil: o cerceamento.
Ataca uma indústria ainda
em formação, que nasceu tardiamente no Brasil nos anos 70
e se constituiu como mercado
efetivo somente a partir dos 90.
Hoje, as TVs por assinatura,
que estão se revigorando através de leis de incentivo à produção nacional, deixaram de ser
meras repetidoras de conteúdo
estrangeiro e começam a gerar
empregos para profissionais do
audiovisual, trazendo inovação
de fora e de dentro.
Debulhando todo o seu conteúdo, é evidente, avista-se
muita produção duvidosa, mas
se colhe também o que de melhor está sendo produzido no
mundo da TV.
Comparar a influência em termos de dominação cultural da TV a cabo à
ameaça militar da 4ª Frota
americana é no mínimo uma
piada [e velha], uma atitude
anacrônica de uma esquerda já
tão antiquada e sectária que
nos faz lembrar os métodos do
general Quandt de Oliveira, ministro das Comunicações
[1974-79] do governo ditatorial
do general Geisel, que preconizava a estatização das TVs e o
cerceamento da exibição de
produção estrangeira, num
momento em que a Europa se
preparava para privatizar suas
TVs e McLuhan já tinha formulado o conceito de "aldeia global".
Ideias obtusas como as
proclamadas por Garcia e a insistência em manter o isolamento eletrônico para melhor
manipular e dominar -como
em Cuba, Venezuela e China-
é o mesmo que proibir a publicação de autores estrangeiros.
Como diz o filósofo Slavoj Zizek: com esta esquerda, quem
precisa de direita?
Caberá ao governo decretar o
que é "esterco cultural"? Cercear a exibição de conteúdos,
numa era de transmídia, é uma
medida isolacionista, que não
gera troca de ideias nem de
ideais. É estar na contramão da
cultura e do que acontece no
mundo. Fico com Bernard
Shaw: "Liberdade significa responsabilidade, é por isso que
tanta gente tem medo dela".
LUIZ FERNANDO CARVALHO, 49, é cineasta e
diretor de TV. Dirigiu "Lavoura Arcaica", "Hoje É
Dia de Maria" e "Capitu", entre outros
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