São Paulo, Quinta-feira, 18 de Fevereiro de 1999
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JAZZ
Caixa da Impulse! traz oito CDs com gravações dos anos 60 e retoma a discussão sobre a qualidade do som a laser
John Coltrane "em estúdio" abandona o LP

Reprodução
John Coltrane, saxofonista que fez a ponte entre o bebop e a avant-garde e agora tem lançadas em CD suas gravações de estúdio


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

Acaba de ser lançada nos EUA uma caixa de CDs com todas as gravações de estúdio para o selo Impulse! feitas pelo Classic Quartet do saxofonista John Coltrane.
Alguns puristas continuam a lamentar a substituição dos discos analógicos pelo sistema laser.
Na sua opinião, o som do CD, embora livre dos chiados, perde em calor e ambiência para os velhos LPs de 33 ou 45 RPM (rotações por minuto) ou mesmo os monos "bolachões" de 78 RPM.
Pode ser. Mas, a cada dia, a tese se torna menos verificável, dada a crescente ausência de toca-discos tradicionais no mercado fonográfico (embora nos últimos dois anos tenha havido uma espécie de ressurreição cult -e muito cara- do sistema analógico).
Com certeza, no entanto, só a tecnologia do laser permite o que a nova caixa de Coltrane possibilita aos fãs de um grande músico.
Você pode acompanhar toda uma fase da carreira do artista ou na ordem cronológica das gravações, ou na sequência que ele e seus produtores acharam mais conveniente oferecer ao público na época em que elas foram produzidas.
No caso, a caixa oferece em oito CDs tudo o que Coltrane e seu quarteto gravaram em estúdio para o selo Impulse! entre dezembro de 1961 e setembro de 1965.
Se você quiser, no entanto, pode programar seu toca-discos para executar as faixas na sequência em que foram comercializadas na forma de LPs na década de 60.
Como a caixa ainda coloca à disposição várias versões inéditas de algumas das faixas daqueles discos, você também tem a oportunidade de constatar como a interpretação das músicas evoluiu para os artistas e inferir os critérios que nortearam suas opções musicais.
Não é pouco. Ainda mais para um gênio do jazz do quilate de John Coltrane. Se fosse possível (e talvez ainda venha a ser, graças aos avanços da tecnologia fonográfica) juntar o trio mais expressivo dos catalisadores do jazz moderno, ele seria formado pelo pianista Thelonius Monk, o pistonista Miles Davis e o saxofonista Coltrane.
Davis e Coltrane trabalharam juntos por cinco anos. O Classic Quartet nasceu quando Coltrane resolveu iniciar carreira própria.
O primeiro disco do grupo (que tinha McCoy Tiner no piano, Elvin Jones na bateria e Jimmy Garrison no baixo, este só a partir de 1962) foi para o selo Atlantic, em 1960.
"My Favorite Things" foi um disco incomum. Foi o primeiro que Coltrane gravou com seu sax-soprano. Além disso, o carro-chefe era uma canção improvável para o sempre agitado Coltrane: a bem-comportada música de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein que fazia parte da trilha sonora de "A Noviça Rebelde".
É verdade que, depois de delinear a melodia conhecida do público, Coltrane parte para frases de duração irregular, entremeadas de notas estranhas ao modo prevalente. Ainda assim, a faixa-título e as demais, todas standards, desse disco eram conservadoras.

Ousadia
No selo Impulse!, Coltrane dispunha de mais liberdade criativa. Mas as primeiras gravações, como se constata com a caixa, foram ainda bastante disciplinadas. Para começar, um mono com a linda canção folclórica "Greensleaves".
No lado B daquele 45 RPM, outra música de Rodgers e Hammerstein, "It's Easy to Remember".
O primeiro LP também foi discreto, com a maioria das faixas ocupadas por valsas modalizadas, em que Coltrane e grupo intercalavam um lirismo um pouco embrutecido com sequências de escalas.
O segundo LP para a Impulse! continuou na linha de agradar ao público menos ousado: só baladas já conhecidas e apreciadas, em arranjos apenas pouco inovadores.
Essas gravações contrastavam de maneira radical com o experimentalismo atrevido que Coltrane mostrava ao público em suas apresentações ao vivo. A dicotomia aparente chamou a atenção dos críticos, que a denunciaram como uma intimidação de caráter comercial.
Por influência dos ataques ou por ter-se completado a sua maturação, o fato é que os lançamentos seguintes na Impulse! foram um crescente desafio à ordem musical estabelecida no reino do jazz.
O quarteto de Coltrane passou a refletir e ajudar a definir a sociedade norte-americana da primeira metade dos anos 60, em especial no aspecto das relações raciais.
A música de Coltrane, desafiadora e agressiva, se tornou um estandarte sonoro do movimento pelos direitos civis. "Alabama", gravada em 18 de novembro de 1963, teve importância comparável ao discurso "Eu Tenho um Sonho", de Martin Luther King, como elemento de união dos negros.
Ela foi feita em memória de quatro crianças mortas num atentado a bomba contra uma igreja negra na cidade de Birmingham, Alabama, sul dos EUA, e impressiona pela tristeza introspectiva, pelo tom de revolta e final esperançoso.
"A Love Supreme", de dezembro de 1964, é o ponto supremo da carreira de Coltrane como compositor e uma das mais analisadas obras da história do jazz. Quase um oratório, sintetiza em música o drama do movimento negro nos EUA nos anos 60. Vendeu 250 mil cópias na época e, ainda hoje, é referência cultural para os negros.


Disco: The Classic Quartet: Complete Impulse! Studio Recordings (oito CDs)
Lançamento: Impulse!
Quanto: US$ 74,62
Onde encomendar: www.cduniverse.com




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