São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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Updike volta

Jill Krementz/Reprodução
O escritor John Updike, 64, em foto do livro "The Winter's Desk", da fotógrafa Jill Krementz



Autor de "Coelho Corre" e "Bech is Back" fala à Folha sobre "Bech no Beco", que sai agora no Brasil



CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Loca

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Um título óbvio para uma artigo em inglês sobre "Bech at Bay", de John Updike, seria "Updike is Bech". Aí estariam as duas informações básicas sobre o livro que o escritor publicou em 1998 nos EUA e que chega esta semana às livrarias brasileiras, como "Bech no Beco", editado pela Companhia das Letras.
Updike já havia escrito dois livros protagonizados pelo escritor "semiobscuro e judeu" Henry Bech. O primeiro em 1970, o segundo, em 1982.
Bech estava de volta ("was back"). E ninguém revela mais sobre John Updike do que o personagem. Ou seja, Updike, de certa forma, é Bech ("Updike is Bech").
Agora o célebre alter ego de Updike, o mais importante deles, ao lado de Harry "Coelho" Angstrom (personagem de quatro romances), chega ao Brasil,.
Com idades oscilantes entre 63 anos (no primeiro dos cincos episódios, "Bech em Tcheco") e 74 anos ("Bech e a Prodigalidade da Suécia"), o escritor termina o livro casado, tendo uma filha e um Prêmio Nobel de Literatura.
Se aproxima assim de seu criador, que, aos 64, também é casado e pai, e que, se não levou até hoje o prêmio sueco, já colecionou todas as outras honrarias literárias que valham mais do que uma medalha de honra ao mérito (do Pulitzer ao National Book Award).
As costuras entre o que é Updike e o que é Bech estão em todas as esquinas dos cinco contos de "Bech no Beco". Mais que nada, estão no humor sardônico de ambos, que é associado a uma postura literária de busca dos tempos perdidos, de procura dos pequenos elementos do cotidiano.
"Passei a vida cuidando do meu clima interior e da minha vizinhança imediata", escreve Bech. E seu par Updike diz à Folha: "Acho que para ser um romancista é preciso querer colocar algo de sua vida em seus livros. Olhe para Proust, olhe para Joyce, olhe para Machado de Assis. Escrevem ficção, mas com algo de confissão".
Updike ganha de Bech em volume e em qualidade de confissões. A criatura escreveu sete livros. O criador completou, com a recém-lançada novela "Gertrude and Claudius", a marca de 50 obras.
Essa montanha mágica de romances, poemas, ensaios, resenhas e qualquer outra forma de organização de letras em textos pode não garantir a Updike o posto de "o" melhor escritor norte-americano. Mas ninguém produz tanto tão bem como o estilista Updike. Nem mesmo Bech.
Em "Bech no Beco", Updike dá uma pista de uma de suas características: não gosta de entrevistas. ""Eu detesto entrevista pra jornal", disse Bech. "Leva o maior tempo, você fica bem relaxado, fala demais, aí eles crucificam você publicando o que dá na veneta deles", escreve Updike.
Seja lá como for, aqui vai uma entrevista com Henry Bech, ops, com John Updike.

Folha - Oi, gostaria de falar com o sr. Henry Bech?
John Updike -
(Risos) É ele falando (risos).

Folha - Olá sr. Updike, gostaria de falar sobre o personagem Henry Bech, protagonista de "Bech no Beco", que está sendo lançado no Brasil. Como o sr. o definiria?
Updike -
Ele é como um alter ego meu. Bech é a pessoa que eu seria se tivesse nascido judeu, não fosse casado e morasse em Nova York. É uma invenção do tempo em que eu queria escrever sobre escritores.

Folha - Quando Bech, que já teve contos ambientados na Tcheco-Eslováquia, Suécia, Bulgária etc., vai visitar o Brasil?
Updike -
Ele nunca foi, não é mesmo? Que vergonha. Tenho que arranjar isso. Estou certo de que ele gostaria do Brasil, do mesmo modo como eu gostei.

Folha - As duas últimas palavras de "Bech no Beco" são "bye bye". O seu alter ego está se despedindo dos leitores depois de estrelar três livros, ou você realmente pretende fazê-lo passear por locais como o Brasil?
Updike -
Eu fiz algo muito estranho. Não muitos meses depois de terminar "Bech no Beco", eu escrevi mais uma estória com Bech, publicada na "New Yorker". Ele não está morto, não está nem ao menos doente. Ele só está ficando mais velho, como todos nós. Está em boa saúde, então não gostaria de dizer que é o fim de uma saga. Talvez ele ainda apareça por aí.

Folha - Mas Bech já declarou que cada vez mais se sente como "um experimento com substâncias químicas que estavam prestes a ser despejadas na pia", não?
Updike -
(Risos) Onde mesmo eu escrevi isso? Ah, lembrei, é uma citação de H.G. Wells.

Folha - E com que frequência o sr. costuma ser atormentado por esse tipo de sentimento? Updike - Eu li essa frase de Wells quando era criança e desde então acho apavorante essa descrição da morte. Ela é tão absoluta e somos tão provisórios. Eu não conseguia aceitar isso. Ainda não consigo. E cada vez mais me sinto como um experimento cujos químicos serão despejados no ralo.

Folha - Até que ponto isso tira seu prazer de escrever? Bech diz que para escrever é necessário se divertir com isso. O sr. consegue mesmo depois de 50 livros?
Updike -
Eu me divirto, uns dias mais do que outros, mas sempre tento me lembrar que é fundamental se divertir ao escrever. Às vezes chega a parecer que é um negócio. Você fica sem saber muito bem o que está fazendo. E às vezes talvez não tenha tanto prazer na escrita como há 40 anos. Mas é uma espécie de brincadeira para mim. E sempre penso: se eu não me divertir escrevendo, como o leitor poderá se divertir lendo?

Folha - O sr. concorda com Bech, que escreve que "a importância não tem importância"?
Updike -
Sim. Ele dizia isso quando tentava escrever o discurso para a noite em que fosse receber o Prêmio Nobel, e nada era bom o suficiente. Acredito que o que é frequentemente descrito como importante na carreira de um escritor, como eventos grandiosos, prêmios notáveis, não é realmente de grande valia. Importante é o extrato e a beleza dos dias comuns, em que não há nada de excepcional. Penso que o escritor deve acreditar que a experiência cotidiana é mais importante de tudo. É importante o que é real.

Folha - Falando sobre o que é real e o que é criação, como é a relação do sr. com Bech, sua criatura?
Updike -
Ele foi criado no final dos anos 60, acho que pela minha necessidade de escrever sobre Nova York, uma cidade que eu adoro, apesar de nunca querer morar lá. Criei pra escrever sobre a estranheza que é a devoção aos criadores, em especial aos escritores. Ninguém realmente precisa deles. Se todos os escritores fossem exterminados, o mundo continuaria o mesmo.

Folha - Bech mora em Nova York, e escreveu apenas sete livros. O sr. chega agora ao 50º. Como consegue produzir tanto?
Updike -
Eu não ensino, como fazem muitos escritores. Isso tira muito da energia. Não tenho desculpas para não sentar todos os dias em meu escritório pelo menos das 9h até as 13h. Nesse tempo, é possível escrever umas três páginas. No final do ano, essas folhas acabam tomando um grande volume. Quando me mudei para a Nova Inglaterra (EUA), assumi um compromisso comigo de produzir um livro por ano, ainda que um pequeno volume de poesias. Estou quase cumprindo isso.

Folha - E existe algum plano de mais um grande romance?
Updike -
Gostaria muito. Em menos de um ano quero limpar minha mente, minha mesa e escrever algo mais longo e ambicioso. Mas ainda não sei sobre o quê.

Folha - E o que o sr. está escrevendo agora?
Updike -
Acabo de enviar pelo correio um resenha sobre uma nova biografia de Marcel Proust. Foi o primeiro grande escritor que li. E me apresentou um novo modo de escrever. O jeito dele é o jeito certo de escrever. Acho que só por isso fiz essa resenha. Estou soterrado em tarefas. Acho que "Bech no Beco" é um pouco sobre isso. Quando o escritor deve fazer seu trabalho, quando deve se calar. Mas não é de minha natureza me calar. Acho que vou ter de esperar que alguma doença o faça.


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