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BERNARDO CARVALHO
A infância do mundo
Quem acha que Matthew
Barney não passa de um
impostor kitsch deve se perguntar
o que Richard Serra está fazendo
no alto da rampa do Guggenheim, vestido de metalúrgico,
com máscara de gás, derramando
vaselina pela calha que desce pela
espiral interna do museu, no filme "The Order" ("A Ordem"),
que conclui a retrospectiva do
criador da série "Cremaster", em
Nova York.
Matthew Barney, 36, é hoje um
dos artistas americanos mais celebrados no mundo. Foi modelo e
atleta antes de começar a expor.
Tem uma filha com a cantora
Björk. Entre 1994 e 2002, criou um
ciclo de cinco filmes (a série "Cremaster") em que objetos e seres
híbridos se associam num universo cosmético, viscoso, perverso e
onírico, como personagens de histórias fantásticas, ficções científicas e contos de fada. Daí o espanto de quem depara com a figura
de Richard Serra, um dos escultores mais importantes da segunda
metade do século 20, inicialmente
associado ao minimalismo, em
meio ao excesso da retrospectiva
de Barney no Guggenheim.
Barney transformou o museu
numa grande instalação: o cenário de um jogo de desafios físicos
cujas etapas são representadas
pelos cinco filmes da série "Cremaster". As obras expostas são os
objetos de cena dos filmes, exibidos por sua vez em telas espalhadas pelo museu. O excesso, porém, é aqui uma forma de reduzir tudo
ao essencial.
Tudo na obra de Barney diz respeito ao desejo. E a uma espécie
de competição com o Criador. Tudo em que Matthew Barney toca
vira Matthew Barney, a começar
pelo próprio museu que, em suas
formas orgânicas, agora parece
ter sido concebido com o único
objetivo de um dia abrigar esta
retrospectiva. Barney materializa
o seu imaginário antes de chegar
a formar conceitos: o inconsciente
é a sua reação contra o "conceitual" que dominou a arte nas últimas décadas. O objetivo, de certa forma, é análogo ao do minimalismo: alcançar o essencial, só
que, paradoxalmente, por meio
do esvaziamento de sentido produzido pelo excesso de imagens
inconscientes. O que explica e justifica, em parte, a participação de
Richard Serra.
Parece haver símbolos por todos
os lados da exposição, mas no
fundo eles não querem dizer nada. O único sentido que resta é físico e lúdico. A começar pelo próprio "cremaster", nome do músculo que sustenta o testículo e dá
título à série de filmes. Há referências a Hollywood e Busby Berkeley, aos mórmons e à franco-maçonaria. Mas a simbologia, em
seu excesso alusivo, é primitiva e
infantil. Faz parte de um jogo que
não significa nada além do próprio jogo.
São imagens da cultura ocidental reapropriadas pelo inconsciente do artista e regurgitadas
numa nova forma, seu imaginário, criando um universo paralelo, coeso e interligado por associações em circuito fechado, o que
responde pelo efeito claustrofóbico.
A fascinação por Houdini, que o
artista já manifestou em diferentes ocasiões, é uma chave. Houdini é o homem que consegue se
reinventar fisicamente para escapar de caixas e correntes. É o homem que transforma o próprio
aprisionamento em jogo e o desafio aos limites físicos, em espetáculo.
As alusões sadomasoquistas e a
obsessão pelas formas orgânicas,
pelos fluidos e secreções, pela animalidade, pelo hibridismo e pela
monstruosidade fazem parte desse jogo em que o artista procura
transcender os limites físicos pela
recriação do corpo e não pelo seu
abandono em nome do espírito.
Em Matthew Barney, o hibridismo é a metáfora máxima, e
perversa, da criação: a invenção
de seres, de próteses, de máquinas
e de suas combinações em seres-máquinas. Mais do que a criação
de uma nova linguagem, o que está em jogo aqui é a tentativa de
compor uma mitologia pessoal,
uma dimensão mítica anterior
(ou posterior) à linguagem e à interpretação, por meio de um processo simples de exteriorização e
materialização das imagens da
cabeça do artista. E se por um lado isso pode parecer extremamente aberto e libertário, por outro não passa da exibição de um
espaço confinado.
Barney não cessa de fazer referências à maçonaria. Há sempre
um sentido sexual nas sociedades
secretas. O fundador de uma nova seita nada mais faz do que recriar a sociedade com regras baseadas na sua imaginação e no
seu desejo. As regras, no fundo,
expõem os desejos dos homens
que as criaram. É o que diz a obra
de Barney. A sociedade secreta,
com suas regras e sua organização arbitrária, é também uma
tentativa de fazer face ao mistério
da criação pela criação do mistério. Ao contrário da arte, porém,
ela não amplia horizontes e possibilidades, não abre caminhos para novos mundos, mas a porta para um mundo fechado em si mesmo.
À imagem da maçonaria, Barney cria um mundo paralelo, com
regras e lógica próprias (e incompreensíveis para quem está do lado de fora), pela materialização
quase que imediata das formas
do seu inconsciente e do seu desejo (os filmes são como portas de
entrada para esse mundo fechado
e os objetos exibidos na retrospectiva servem como "prova" irônica
da sua existência física). Não deve
estranhar, portanto, o espectador
que sair do museu com náuseas. É
como voltar à consciência depois
de horas preso dentro da cabeça
de outra pessoa.
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