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São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2003

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BERNARDO CARVALHO

A infância do mundo

Quem acha que Matthew Barney não passa de um impostor kitsch deve se perguntar o que Richard Serra está fazendo no alto da rampa do Guggenheim, vestido de metalúrgico, com máscara de gás, derramando vaselina pela calha que desce pela espiral interna do museu, no filme "The Order" ("A Ordem"), que conclui a retrospectiva do criador da série "Cremaster", em Nova York.
Matthew Barney, 36, é hoje um dos artistas americanos mais celebrados no mundo. Foi modelo e atleta antes de começar a expor. Tem uma filha com a cantora Björk. Entre 1994 e 2002, criou um ciclo de cinco filmes (a série "Cremaster") em que objetos e seres híbridos se associam num universo cosmético, viscoso, perverso e onírico, como personagens de histórias fantásticas, ficções científicas e contos de fada. Daí o espanto de quem depara com a figura de Richard Serra, um dos escultores mais importantes da segunda metade do século 20, inicialmente associado ao minimalismo, em meio ao excesso da retrospectiva de Barney no Guggenheim.
Barney transformou o museu numa grande instalação: o cenário de um jogo de desafios físicos cujas etapas são representadas pelos cinco filmes da série "Cremaster". As obras expostas são os objetos de cena dos filmes, exibidos por sua vez em telas espalhadas pelo museu. O excesso, porém, é aqui uma forma de reduzir tudo ao essencial.
Tudo na obra de Barney diz respeito ao desejo. E a uma espécie de competição com o Criador. Tudo em que Matthew Barney toca vira Matthew Barney, a começar pelo próprio museu que, em suas formas orgânicas, agora parece ter sido concebido com o único objetivo de um dia abrigar esta retrospectiva. Barney materializa o seu imaginário antes de chegar a formar conceitos: o inconsciente é a sua reação contra o "conceitual" que dominou a arte nas últimas décadas. O objetivo, de certa forma, é análogo ao do minimalismo: alcançar o essencial, só que, paradoxalmente, por meio do esvaziamento de sentido produzido pelo excesso de imagens inconscientes. O que explica e justifica, em parte, a participação de Richard Serra.
Parece haver símbolos por todos os lados da exposição, mas no fundo eles não querem dizer nada. O único sentido que resta é físico e lúdico. A começar pelo próprio "cremaster", nome do músculo que sustenta o testículo e dá título à série de filmes. Há referências a Hollywood e Busby Berkeley, aos mórmons e à franco-maçonaria. Mas a simbologia, em seu excesso alusivo, é primitiva e infantil. Faz parte de um jogo que não significa nada além do próprio jogo.
São imagens da cultura ocidental reapropriadas pelo inconsciente do artista e regurgitadas numa nova forma, seu imaginário, criando um universo paralelo, coeso e interligado por associações em circuito fechado, o que responde pelo efeito claustrofóbico.
A fascinação por Houdini, que o artista já manifestou em diferentes ocasiões, é uma chave. Houdini é o homem que consegue se reinventar fisicamente para escapar de caixas e correntes. É o homem que transforma o próprio aprisionamento em jogo e o desafio aos limites físicos, em espetáculo.
As alusões sadomasoquistas e a obsessão pelas formas orgânicas, pelos fluidos e secreções, pela animalidade, pelo hibridismo e pela monstruosidade fazem parte desse jogo em que o artista procura transcender os limites físicos pela recriação do corpo e não pelo seu abandono em nome do espírito.
Em Matthew Barney, o hibridismo é a metáfora máxima, e perversa, da criação: a invenção de seres, de próteses, de máquinas e de suas combinações em seres-máquinas. Mais do que a criação de uma nova linguagem, o que está em jogo aqui é a tentativa de compor uma mitologia pessoal, uma dimensão mítica anterior (ou posterior) à linguagem e à interpretação, por meio de um processo simples de exteriorização e materialização das imagens da cabeça do artista. E se por um lado isso pode parecer extremamente aberto e libertário, por outro não passa da exibição de um espaço confinado.
Barney não cessa de fazer referências à maçonaria. Há sempre um sentido sexual nas sociedades secretas. O fundador de uma nova seita nada mais faz do que recriar a sociedade com regras baseadas na sua imaginação e no seu desejo. As regras, no fundo, expõem os desejos dos homens que as criaram. É o que diz a obra de Barney. A sociedade secreta, com suas regras e sua organização arbitrária, é também uma tentativa de fazer face ao mistério da criação pela criação do mistério. Ao contrário da arte, porém, ela não amplia horizontes e possibilidades, não abre caminhos para novos mundos, mas a porta para um mundo fechado em si mesmo.
À imagem da maçonaria, Barney cria um mundo paralelo, com regras e lógica próprias (e incompreensíveis para quem está do lado de fora), pela materialização quase que imediata das formas do seu inconsciente e do seu desejo (os filmes são como portas de entrada para esse mundo fechado e os objetos exibidos na retrospectiva servem como "prova" irônica da sua existência física). Não deve estranhar, portanto, o espectador que sair do museu com náuseas. É como voltar à consciência depois de horas preso dentro da cabeça de outra pessoa.


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