|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Tintin por tintin
Em documentário, desenhista fala da infância e do "rompimento de contrato" com Deus
DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL
O desenhista belga Hergé (1907-83), ao contrário de seu mais conhecido personagem, Tintin, que
já visitou dezenas de países do
globo, foi traduzido para mais de
45 línguas diferentes e costuma
ser saudado como herói europeu
a cada um de seus 75 aniversários,
ainda hoje é uma incógnita.
Alvo de infinitas discussões sobre sua aproximação com a direita radical, nos anos 30, acusações
de "colaborador" do nazismo,
nos 40, e até uma discussão na Assembléia Nacional francesa, cinco
anos atrás, para julgar se Tintin
era "de esquerda" ou "de direita",
Georges Rémi, vulgo Hergé, nunca abriu o bico para confirmar ou
desmentir seu passado. Ou melhor: abriu uma única vez.
Procurado pelo então fanzineiro e hoje escritor francês Numa
Sadoul, em 1971, para uma entrevista de rotina, o pai de Tintin surpreendeu o rapaz ao aceitar depor
para uma biografia em livro, que
Sadoul sonhava realizar.
"Tintin e Eu" levou três anos para ser publicado, filtrado por uma
série de correções e reescrituras
exigidas por Hergé. Agora, quase
três décadas depois, a íntegra dessas entrevistas em que o autor fala
sobre a sua infância "medíocre",
seu perfeccionismo incorrigível e
de sua relação "pecaminosa" com
o catolicismo e as mulheres, ressurge, sem censura, no documentário "Tintin e Eu", do dinamarquês Anders Ostergaard, 38.
Apoiado também em falas de
estudiosos de quadrinhos, da segunda mulher do desenhista,
Fanny, e do próprio Sadoul, o documentário é dividido em três fases: o início da carreira de Hergé,
no jornal católico belga "Le Vingtième Siècle", editado pelo reverendo Wallez, um adorador confesso de Mussolini; o fim conturbado do primeiro casamento do
desenhista e seu "rompimento de
contrato" com Deus; e, nos últimos momentos, o reencontro
com o velho amigo Tchang-Tchong, que, quando jovem, ajudara Hergé em álbuns ambientados na China, entre eles a obra-prima "Tintin no Tibete".
Por conta da comemoração dos
75 anos de Tintin, em 10 de janeiro último, o filme estreou em festivais europeus de cinema neste
ano e foi levado ao ar por TVs de
Escandinávia, França, Bélgica e
Suíça. Na próxima semana, faz escala no Brasil para participar da
mostra É Tudo Verdade.
A Folha trocou e-mails com o
diretor Anders Ostergaard. Leia a
seguir trechos da entrevista.
Folha - Hergé era avesso a aparições públicas. Tudo o que você tinha em mãos eram fitas cassetes,
velhas fotos e os 23 álbuns de Tintin. Como transformar isso em um
documentário consistente?
Anders Ostergaard - Em primeiro
lugar, eu tinha um grande trunfo
visual: os desenhos de Hergé. O
desafio era fazer dessas imagens
fixas cinema, motivo pelo qual
decidimos criar manipulações em
3D para que o público pudesse
"viajar" por esses desenhos. Outro desafio era criar uma imagem
viva de Hergé falando, quando tudo o que tínhamos era uma fita
cassete. A solução, que parece
com animação, foi manipular entrevistas que Hergé deu à TV em
seu escritório em várias ocasiões.
Folha - A morte de Hergé facilitou
a exploração desse material?
Ostergaard - Como você sabe,
ele tinha arrependimentos sobre a
entrevista que deu a Numa Sadoul, em 1971, e só decidiu publicá-la severamente censurada. Assim só o passar do tempo tornou
possível que usássemos suas declarações em áudio sem censura.
Folha - Falando francamente e
baseado em suas pesquisas para o
documentário: Hergé era fascista?
Ostergaard - Não, de jeito nenhum. Sua cabeça -sempre
muito aberta, um pouco anarquista e acima de tudo bem-humorada- não combinava com
idéias totalitárias. Nos anos 30, ele
ainda era um jovem imaturo, faria
qualquer coisa que as pessoas que
estivessem a seu redor lhe pedissem. Creio que ele estava por demais focado em sua carreira e no
sucesso de Tintin quando decidiu
trabalhar para o jornal "Le Soir",
sob controle alemão em 1940.
Folha - Que influência teve o reverendo Wallez na formação política de Hergé?
Ostergaard - Acho que ele via
Wallez mais como um líder espiritual do que político. Wallez era
um homem muito carismático,
carinhoso, dinâmico, creio que
uma figura paterna para Hergé
-foi uma influência mais pessoal
do que ideológica sobre ele.
Folha - Até que ponto ter conhecido Tchang-Tchong funcionou como
um contraponto?
Ostergaard - Tchang se tornou
um portal para um mundo diferente, uma outra civilização muito distante da Bélgica e da estreiteza de visão do catolicismo que
Hergé conhecia. Dessa forma,
acho que Tchang antecipa a modernidade -filosofia oriental,
pintura abstrata e assim por diante- que Hergé abraçaria profundamente no início dos anos 60.
Folha - Como o seu documentário
foi recebido pelos fãs de Tintin?
Ostergaard - Alguns acharam
um tanto taciturno, melancólico,
que dei pouca ênfase ao lado cômico de Tintin. Outros sentiram
falta do cãozinho Milou! Mas, sobretudo, a reação foi bastante positiva porque eles aprenderam algumas coisas novas sobre Hergé.
É TUDO VERDADE. Quando: de 25/3 a 4/
4, no Rio; de 26/3 a 4/4, em São Paulo; de
6/4 a 11/4, em Brasília. Informações:
www.etudoverdade.com.br.
Texto Anterior: HQ: Romancistas seguem trilha rumo aos quadrinhos Próximo Texto: Saiba mais: Repórter cobriu os grandes feitos do século 20 Índice
|