São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 2005

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"A VIDA É UM MILAGRE"

Anarquia de Emir Kusturica tropeça em excessos

LEONARDO CRUZ
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

A premissa de "A Vida É um Milagre" é ótima. Uma cidadezinha nas montanhas entre a Bósnia e a Sérvia decide erguer uma ferrovia para ligar as duas Repúblicas da antiga Iugoslávia -idéia que seria excelente, se não fosse pouco antes da explosão da guerra nos Bálcãs, em 1992.
O idealismo representado pela construção da estrada em contraposição à realidade do conflito armado é a mola mestra deste filme do iugoslavo Emir Kusturica, que já abordara a efervescência da região em "Underground", Palma de Ouro em Cannes em 1995.
Esse choque está presente em dois personagens: Luka (Slavko Stimac), idealizador da ferrovia e cego ao confronto que se aproxima, e seu filho, Milos (Vuk Kostic), goleiro obrigado a desistir da carreira para se alistar. Ao passo que Luka concentra atenções na obra, a iminência da guerra invade aos poucos o cotidiano do vilarejo, e o conflito eclode no dia da inauguração da ferrovia.
Kusturica recorre ao estilo que construiu ao longo de sua carreira: uma narrativa quase anárquica, sobrepondo situações que flertam com o realismo mágico, e muita música cigana (já forte em "Gato Preto, Gato Branco", 98). Há uma certa sensação de déjà vu, mas esse não é o maior problema.
Ao contrário desses dois projetos anteriores, aqui o cineasta perdeu a condução da trama. Em longos 155 minutos, optou por manter esquetes de resultado duvidoso a dar mais unidade à obra.
Síntese disso é a passagem do jogo de futebol, em que a partida na qual Milos atua é interrompida por sua mãe, que resolve demonstrar seus dotes de cantora lírica. Arrastada, não acrescenta nada à trama e teria feito um bem se amputada na mesa de montagem.
Ainda assim, há bons momentos, como a seqüência inicial de "revolução dos bichos": o burro de um fabricante de caixões que empaca no meio do trilho da ferrovia (apaixonado e não correspondido, tenta o suicídio), o cachorro que salta dentro do carro do prefeito na hora em que este toma seu café da manhã, a dupla de ursos que invade uma casa e destrói tudo o que vê pela frente. OK, para a composição da história, é outro trecho cortável, mas aqui as piadas funcionam.
Com essa opção pelo excesso, tão típica de Kusturica, a construção dos personagens acontece aos trancos. A enfermeira, por exemplo, jogada numa cena, torna-se no final personagem essencial.
A Vida É um Milagre
Zivot Je Cudo
  
Produção: Iugoslávia/França, 2004
Direção: Emir Kusturica
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Jardim Sul e circuito

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