São Paulo, sábado, 18 de março de 2006

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RODAPÉ

Jorge de Lima, prosa e verso

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

O menos unânime entre os grandes nomes modernistas, Jorge de Lima (1895-1953) deixou uma obra variada o bastante, em prosa e verso, para incomodar gregos e troianos, como provam dois lançamentos. Após "Poemas" (1927), livro que marca sua adesão ao modernismo, e da "Invenção de Orfeu" (1952), poema épico-lírico de mais de dez mil versos que coroa o hermetismo da fase final, relançados pela Record, em 2004 e 2005, respectivamente, a mesma editora recoloca agora em circulação "Tempo e Eternidade" (1935), "A Túnica Inconsútil" (1938) e "Anunciação e Encontro de Mira-Celi" (1950), reunidos num único volume.
Na prosa, por outro lado, depois da reedição de "O Anjo" (1934), "Calunga" (1935), "A Mulher Obscura" (1939) e "Guerra dentro do Beco" (1950), pela Civilização Brasileira, quase dez anos atrás, a editora da UFPR lança uma edição fac-similar do romance "Salomão e as Mulheres", de 1927.
A decisão editorial de reunir os três volumes faz sentido: estão todos compreendidos por um mesmo arco temático -o religioso- e testemunham uma nova e decisiva inflexão de estilo no poeta alagoano, que antes já renegara o parnasianismo em nome de uma militância modernista, enraizada na experiência nordestina. O marco inicial desta poesia de inspiração católica teve formulação clara e programática na epígrafe de "Tempo e Eternidade", que trazia poemas de Jorge de Lima ao lado de outros de Murilo Mendes: "restauremos a poesia em Cristo".
O sentimento da queda, a apreensão apocalíptica do tempo presente e da história, enfim, a retórica e o imaginário bíblicos foram, aos poucos, se combinando a uma valorização da imagem ousada, que refaz os contornos do mundo, e à construção de uma figura mítica do poeta, tomado de orgulho órfico, aproximando as figuras do Criador e do criador.
Nesse processo, a vizinhança de Murilo Mendes e Ismael Nery, aliada à apropriação de recursos estilísticos e temas do surrealismo -entre eles, a valorização do erotismo como possibilidade de descolonizar a fantasia poética-, jogou um papel importante.
O que começou dogmático, celebração da doutrina cristã em versos, evoluiu para uma celebração da própria lírica, traduzida por uma dicção visualista, repleta de imagens que se fundam no apelo concreto do simples, dos elementos e da natureza, mas desafiadoras na sua maneira insólita de recombinar estes fragmentos tomados ao mundo. Em "Anunciação e Encontro de Mira-Celi", o terreno está preparado para a eclosão do hermetismo da fase final, composta pelo "Livro de Sonetos" e pela "Invenção de Orfeu". Mira-Celi é um misto de musa mística e poética, representa a transfiguração da visão ordinária do mundo que o discurso poético suscita. Se não é o melhor Jorge de Lima, sem dúvida já o anuncia com clareza.
Já "Salomão e as Mulheres", um romance, nos coloca em contato com o período em que se deu sua aproximação ao modernismo do centro-sul. Nos anos 90, a Civilização Brasileira havia excluído o título de seu projeto de reeditar a prosa do autor, uma vez que "A Mulher Obscura" (1939) é uma versão retrabalhada do mesmo tema -um artista em formação na província nordestina, entre as mulheres, a política local, as tensões do localismo e do cosmopolitismo-, incorporando enredo e longas passagens do primeiro.
Mas o livro de 1939 é uma versão explicada e aplainada do romance dos anos 20. A edição fac-similar nos põe em contato com as arestas da criação, certo brutalismo numa prosa com fome de experimentalismo, mas ainda eivada de traços passadistas. Dos paratextos do volume à indefinição da dicção, a meio caminho entre pós-machadiana e pré-oswaldiana, tudo faz do livro um documento saboroso dos anos quentes do debate modernista, evidência bem-vinda da identidade plural de Lima e de anos esteticamente ricos e turbulentos.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna

Anunciação e Encontro de Mira-Celi
    
Autor: Jorge de Lima
Editora: Record
Quanto: R$ 44,90 (320 págs.)

Salomão e as Mulheres
   
Autor: Jorge de Lima
Editora: UFPR
Quanto: R$ 29 (264 págs.)


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