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RODAPÉ
Jorge de Lima, prosa e verso
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
O menos unânime entre os
grandes nomes modernistas, Jorge de Lima (1895-1953)
deixou uma obra variada o bastante, em prosa e verso, para incomodar gregos e troianos, como
provam dois lançamentos. Após
"Poemas" (1927), livro que marca
sua adesão ao modernismo, e da
"Invenção de Orfeu" (1952), poema épico-lírico de mais de dez mil
versos que coroa o hermetismo
da fase final, relançados pela Record, em 2004 e 2005, respectivamente, a mesma editora recoloca
agora em circulação "Tempo e
Eternidade" (1935), "A Túnica Inconsútil" (1938) e "Anunciação e
Encontro de Mira-Celi" (1950),
reunidos num único volume.
Na prosa, por outro lado, depois
da reedição de "O Anjo" (1934),
"Calunga" (1935), "A Mulher
Obscura" (1939) e "Guerra dentro
do Beco" (1950), pela Civilização
Brasileira, quase dez anos atrás, a
editora da UFPR lança uma edição fac-similar do romance "Salomão e as Mulheres", de 1927.
A decisão editorial de reunir os
três volumes faz sentido: estão todos compreendidos por um mesmo arco temático -o religioso-
e testemunham uma nova e decisiva inflexão de estilo no poeta
alagoano, que antes já renegara o
parnasianismo em nome de uma
militância modernista, enraizada
na experiência nordestina. O
marco inicial desta poesia de inspiração católica teve formulação
clara e programática na epígrafe
de "Tempo e Eternidade", que
trazia poemas de Jorge de Lima ao
lado de outros de Murilo Mendes:
"restauremos a poesia em Cristo".
O sentimento da queda, a
apreensão apocalíptica do tempo
presente e da história, enfim, a retórica e o imaginário bíblicos foram, aos poucos, se combinando
a uma valorização da imagem ousada, que refaz os contornos do
mundo, e à construção de uma figura mítica do poeta, tomado de
orgulho órfico, aproximando as
figuras do Criador e do criador.
Nesse processo, a vizinhança de
Murilo Mendes e Ismael Nery,
aliada à apropriação de recursos
estilísticos e temas do surrealismo
-entre eles, a valorização do erotismo como possibilidade de descolonizar a fantasia poética-, jogou um papel importante.
O que começou dogmático, celebração da doutrina cristã em
versos, evoluiu para uma celebração da própria lírica, traduzida
por uma dicção visualista, repleta
de imagens que se fundam no
apelo concreto do simples, dos
elementos e da natureza, mas desafiadoras na sua maneira insólita
de recombinar estes fragmentos
tomados ao mundo. Em "Anunciação e Encontro de Mira-Celi",
o terreno está preparado para a
eclosão do hermetismo da fase final, composta pelo "Livro de Sonetos" e pela "Invenção de Orfeu". Mira-Celi é um misto de
musa mística e poética, representa a transfiguração da visão ordinária do mundo que o discurso
poético suscita. Se não é o melhor
Jorge de Lima, sem dúvida já o
anuncia com clareza.
Já "Salomão e as Mulheres", um
romance, nos coloca em contato
com o período em que se deu sua
aproximação ao modernismo do
centro-sul. Nos anos 90, a Civilização Brasileira havia excluído o
título de seu projeto de reeditar a
prosa do autor, uma vez que "A
Mulher Obscura" (1939) é uma
versão retrabalhada do mesmo tema -um artista em formação na
província nordestina, entre as
mulheres, a política local, as tensões do localismo e do cosmopolitismo-, incorporando enredo e
longas passagens do primeiro.
Mas o livro de 1939 é uma versão explicada e aplainada do romance dos anos 20. A edição fac-similar nos põe em contato com
as arestas da criação, certo brutalismo numa prosa com fome de
experimentalismo, mas ainda eivada de traços passadistas. Dos
paratextos do volume à indefinição da dicção, a meio caminho
entre pós-machadiana e pré-oswaldiana, tudo faz do livro um
documento saboroso dos anos
quentes do debate modernista,
evidência bem-vinda da identidade plural de Lima e de anos esteticamente ricos e turbulentos.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente nesta coluna
Anunciação e Encontro de Mira-Celi
Autor: Jorge de Lima
Editora: Record
Quanto: R$ 44,90 (320 págs.)
Salomão e as Mulheres
Autor: Jorge de Lima
Editora: UFPR
Quanto: R$ 29 (264 págs.)
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