São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2008

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"Convivemos bem com o horror"

Doris Salcedo, uma das principais artistas latino-americanas, inaugura obra em Minas Gerais inspirada em campos de concentração

Centro de Arte Contemporânea Inhotim abriga pavilhão exclusivo para artista colombiana, que "rachou" chão da Tate


Edmond Terakopian - 8.out.2007/France Presse
"Shibboleth", rasgo no piso da Tate Modern


MARIO GIOIA
ENVIADO ESPECIAL A BRUMADINHO (MG)

Campos de concentração, desaparecidos, vítimas da segregação e conflitos políticos. As dores do mundo são a força motriz da obra da colombiana Doris Salcedo, que inaugurou no último sábado seu primeiro trabalho permanente no Brasil com o pavilhão do Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Brumadinho (MG).
"Neither" (nenhum) é uma instalação que utiliza o cubo branco típico das galerias de arte e o recobre em suas paredes internas com uma grade, às vezes exposta, às vezes recoberta por gesso. Ao percorrer o espaço, o espectador mergulha em um ambiente asfixiante, repetitivo e vertiginoso. Mas não deve se esperar que Salcedo crie obras literais e panfletárias. A principal artista plástica colombiana e um dos nomes latino-americanos com maior inserção internacional -seu trabalho "Shibboleth" é um rasgo de 167 metros no chão da Tate Modern, em Londres, e fica no museu até o próximo dia 6- não prescinde da forma em suas realizações.
Recuperando-se de uma gripe e satisfeita com a instalação -"na montagem dessa obra em Londres, foi mais complicado"-, Salcedo, que dá raras entrevistas e "odeia com todas as forças" ser retratada, conversou com a Folha. Do Brasil, disse ter sido influenciada "pela modernidade" de Volpi, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape. A seguir, outras observações da artista.

 
CONCEÇPÇÃO DE "NEITHER"
Quando comecei a trabalhar nessa obra, me perguntava como podemos viver com o horror. Como, na década de 30 e 40, conhecíamos a existência dos campos de concentração, mas vivíamos uma vida normal e considerávamos que os campos de concentração não existiam. Nós estamos vivendo uma época igual. Sabemos da sua presença, eles se transformaram, mas não desapareceram. Convivemos com eles. Então, a idéia é pôr em um espaço branco, que é um espaço que remete à nossa intimidade, à nossa casa, que nos protege, justapor a idéia de extrema exterioridade, que é a grade.
Impressionou-me muito que a origem do campo de concentração é um invento espanhol. O general Martínez Campos, em 1896, tem a idéia de acabar com a insurgência independentista em Cuba com um campo de concentração. Os britânicos a retomam na África do Sul na Guerra dos Bôeres [entre 1900 e 1902]. E é impressionante que o campo nasceu em Cuba e voltou a Cuba, neste momento, com Guantánamo.

ENSAÇÕES
Interessa para mim uma obra que tenha uma experiência, não que narre uma história. Não queria contar a história do campo de concentração, mas sim a experiência de estar em um espaço onde a memória não exista. Você entra aqui, começa a ver a superfície, é repetitiva, exatamente igual. Nesse momento, você tem uma realocação de sua memória, é como se o tempo ficasse em suspensão. Não há nada, é como uma vida confinada, onde tudo -suas memórias, seus objetos, sua vida- é retirado de você para que viva em um espaço vazio.

OBRA NA TATE
No caso de "Shibboleth", me interessava mudar a perspectiva tradicional, que é a triunfalista européia. Foi permitido a eles construírem "arcos do triunfo", colunas que comemoram sucessos de suas batalhas etc. Para nós, do Terceiro Mundo, restaram as ruínas. É uma obra na qual você analisa a posição das pessoas do Terceiro Mundo dentro do Primeiro Mundo -nós somos sempre os vetores que transportam drogas, doenças, crimes, tudo de negativo. Eu era uma artista do Terceiro Mundo, a primeira a ser convidada a expor naquele espaço. Tinha de levar comigo esse olhar, tinha de ser negativo lá. [Expor no exterior] Implica em uma maior responsabilidade. Porque cada obra tem de ser contundente. Você não pode sair mais ou menos.

ARTISTA COLOMBIANA
Trato de não trabalhar a experiência pessoal em meus trabalhos. Mas, como cidadã colombiana, eu necessito de visto para ir a 172 países. É um absurdo. Trabalho a partir de pessoas que viveram experiências extremas, o que não é o meu caso. Contudo, ser um artista colombiano é um privilégio. A Colômbia é uma cápsula densa de experiência. O confinamento eu vivo, porque me dá medo transitar pelo país. Na Colômbia, qualquer um pode virar vítima.


O jornalista MARIO GIOIA viajou a convite do Centro de Arte Contemporânea Inhotim


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