São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Cuidado com os virtuosos


Os franceses não toleram a "devassidão" de Sarkozy e não querem um político "virtuoso", mas hipócrita


A HISTÓRIA É conhecida: o presidente francês, divorciado, conheceu e casou com modelo e cantora de proporções generosas e beleza idem. Resultado? Queda de popularidade. Sim, a economia não está famosa, e Sarkozy prometeu mais do que cumpriu. Mas o problema central parece ser o entusiasmo público de Sarkozy por Carla Bruni. Os franceses não gostam de entusiasmos.
Estranho. Eu julgava que um estadista sexualmente ativo deveria ser causa de orgulho para a nação. Vejam Renan Calheiros: quando o escândalo rebentou, eu confesso que não prestei muita atenção a questões de dinheiro. A minha atenção foi inteira para Mônica Veloso. Um político brasileiro que namora Mônica Veloso não deveria ser corrido da arena pública. Deveria ser agraciado com uma estátua e receber os aplausos do seu povo.
O Brasil discordou. A França também discordaria. E alguns moralistas gauleses, como Jean-Louis Debré, presidente do Conselho Constitucional, pedem "compostura" a Sarkozy, um homem apaixonado pela sua própria mulher.
As palavras do ridículo Debré, que são as palavras da maioria do povo francês, não são apenas pedestres. Elas parecem ignorar um aspecto histórico do problema: a última vez que os franceses tiveram um político "composto" e a roçar o virginal, morreram 2.000 pessoas em cinco meses. O político em causa nasceu 250 anos atrás e chamava-se Maximilien de Robespierre.
Quem foi Robespierre? A historiadora britânica Ruth Scurr apresenta o personagem em "Fatal Purity: Robespierre and the French Revolution" (Chatto & Windus, 388 págs.), provavelmente a melhor biografia que li nos últimos tempos.
Antes da Revolução Francesa, Robespierre não passava de um advogado modesto em pequena cidade do norte de França, com particular talento para defender os pobres e oprimidos. Educado no Collège Louis-le-Grand (por onde passaram Molière ou Voltaire), quis o destino que o jovem Robespierre, com 21 anos, fosse o escolhido entre os 500 alunos do colégio para fazer a apologia do rei Luís 16 no mesmo dia em que o monarca foi coroado em Reims.
Mas o destino, sempre irônico, voltaria a colocar Luís 16 na rota de Robespierre. Depois da queda da Bastilha, o "Incorruptível" (como ficou conhecido) foi subindo na hierarquia revolucionária, convertendo-se no rosto do fanatismo e do Terror que guilhotinou o rei, a rainha, os inimigos da Revolução (reais ou imaginários) e até os amigos mais próximos da facção jacobina que Robespierre liderou (como Danton ou Camille Desmoulins). Como explicar essa carreira fulgurante?
Numa palavra, "virtude". E, para o celibatário Robespierre, "virtude" não é simplesmente uma qualidade privada. Para o verdadeiro estadista, não existe distinção entre o público e o privado quando está em causa a salvação da República. A "virtude" é um conceito total e totalitário; e os "inimigos do povo" (uma categoria famosa que Robespierre inventou) não eram simplesmente os que procuravam restabelecer a monarquia ou atrasar a marcha da Revolução. Como se lê em discursos ou peças legislativas, "inimigo do povo" era todo aquele que não respeitava a moralidade.
Não admira que Luís 16 ou Marie Antoinette tenham sido guilhotinados como "inimigos do povo". Eles não apenas representavam o Antigo Regime, mas uma vida de luxúria, deboche e até incesto que incomodava profundamente a cabeça puritana dos jacobinos.
Como também não admira que este puritanismo doentio tenha devorado os seus próprios filhos. Quando Danton, em inusitado momento de humor, confessava a Robespierre que "virtude" era tudo aquilo que ele fazia na cama, todas as noites, com a mulher, o insuspeito revolucionário mal imaginava que apenas contribuía para o seu fragoroso extermínio.
Nos 250 anos do nascimento de Robespierre, os franceses esqueceram o seu maior tirano. Mas continuam herdeiros do espírito e não toleram a "devassidão" do presidente Sarkozy.
Claro que eu posso estar errado e talvez os franceses não desejem um político "virtuoso", mas simplesmente hipócrita. Como Mitterrand, por exemplo, que durante a semana vivia com a amante e ao fim de semana regressava para a família oficial -um belo arranjo que permitiu a Mitterrand esconder a filha ilegítima durante grande parte da existência de ambos. Se é essa a idéia de "compostura" que os franceses apreciam, as minhas desculpas: alguém deveria avisar o presidente.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Cinema: "Chega de saudade" abre projeto "Cadeira do diretor"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.