São Paulo, quarta-feira, 18 de março de 2009

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MARCELO COELHO

Um ser irracional


Sinto-me sitiado por "racionais" de todo tipo, babando de prazer a cada bombardeio israelense


NÃO TENHO a intenção de espezinhar ninguém, mas o caso da menina estuprada aos nove anos me leva a dizer algumas coisas desagradáveis.
Na semana passada, escrevi um texto condenando a dureza do arcebispo de Olinda e Recife. Ele se dedicava a condenar os médicos que fizeram o aborto da menina, sem ligar muito para o estuprador.
Causas desse tipo tendem a ser fáceis para o articulista. Recebi várias mensagens de apoio. Vieram também as manifestações em contrário. A respeito destas, sem nenhum triunfo pessoal, gostaria de fazer alguns comentários.
A maior parte dos que me condenavam seguia uma linha dura e objetiva. "Se o direito canônico estabelece a excomunhão de quem aborta um bebê, trata-se em última análise de obedecer ao direito canônico."
Quem não conhece esse tipo de argumentação? A lei é a lei.
Você pode optar entre obedecê-la ou não. Mas, se quiser ser desobediente, saia da igreja, saia do catolicismo, saia de qualquer ambiente em que a lei vigora. "Brasil: ame-o ou deixe-o". Conheço bem esse tipo de raciocínio, aparentemente racional, evidentemente autoritário.
Alguns dias depois, a CNBB editou um documento, muito hábil, no qual o raciocínio dos "duros" terminou desautorizado. A própria hierarquia católica sabe quando determinadas condenações, plenamente válidas segundo a letra da lei, tornam-se desumanas.
Não pretendo ter nenhum conhecimento a respeito do direito canônico. Sei, como pessoa humana, o momento em que a lei barbariza o destino de uma pessoa humana.
Quando surgiram as primeiras fotos de crianças assassinadas pelos mísseis de Israel, a reação foi semelhante. O articulista (que se horrorizava) estava desinformado, não conhecia todos os lados da questão...
Desculpem-me, mas, se ser racional é ignorar a morte de crianças, se ser racional é gritar contra o aborto de uma menina de nove anos, ocupo orgulhosamente o papel de um ser irracional. Coloco meus sentimentos -meus sentimentos humanos- acima do legalismo, da formalidade, da lógica de quem os critica.
No fundo, o que está em jogo é a razão de Estado. Esses intelectuais conservadores confiam mais no Pentágono, no Departamento de Defesa de Israel, nas leis editadas pelo papa, do que neles mesmos.
Quando o Partido Comunista Francês decidiu apoiar Hitler, em 1939/1940, foram poucos os que pediram demissão. Os intelectuais-soldados obedeciam mais a Hitler e a Stalin que a seu próprio julgamento. Mas o "próprio julgamento" não exige acrobacias de inteligência. É uma questão, acho eu, mais de sinceridade do que de sofisticação.
Contra pessoas inteligentíssimas, George Orwell e Albert Camus exerceram seu próprio e simples julgamento (burríssimo, para quem quiser) ao condenar a violência lógica do Estado.
"Razão de Estado": eis a cifra de tudo o que, hoje em dia, invoca-se contra a simples razão do homem. Sinceramente, sinto-me sitiado por "racionais" de todo tipo, capazes de argumentar minuciosamente a cada bombardeio, a cada ato desumano de autoridades temporais ou eclesiásticas, quando o único argumento a ser invocado, a rigor, é o da pura e automática decência.
Com certeza, não há critérios claros para o que é decente numa ou noutra situação específica. Há um jogo entre autonomia e obediência pessoal, que obviamente os artistas, intelectuais e escritores enfrentam, com as limitações que se conhecem.
Foi também isso o que se deu entre a CNBB e o arcebispo de Recife. A mera obediência às leis contrastava, mesmo dentro da hierarquia católica, com uma certa flexibilidade de parte dos outros.
Conclusão a tomar, válida para quem é ou não é articulista: desobedeça; esqueça a lógica dos que sabem mais do que você; confie no próprio bom senso, não na razão do Estado.
Termino de um modo óbvio. O indivíduo católico está mais dotado do que os demais para atingir o máximo de sua possibilidade moral? Acho que não. Sei apenas que não é preciso muita teologia para impregnar-se de uma verdade sobre a qual ninguém é soberano.
Mas é comum, nestes anos festivos, uma ideologia que reza, estranhamente, contra a própria autonomia do pensamento. Uma obediência que parece orgulhosa e soberba, quando segue ordens superiores, em uma espécie de subordinação feliz e suicida.

coelhofsp@uol.com.br


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