São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2010

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Crítica: "J. S. Bach "A Arte da Fuga'"

Testamento musical de Bach tem versão para dois cravos

Os cariocas Ana Cecília Tavares e Marcelo Fagerlande gravam excelente interpretação do ciclo "A Arte da Fuga"

SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA

Ré-lá-fá-ré-dó sustenido; ré-mi-fá; sol-fá-mi-ré: a partir desse tema simples, Johann Sebastian Bach (1685-1750) escreveu um de seus testamentos musicais, o ciclo "A Arte da Fuga", publicado em 1751 e agora disponível em excelente CD nacional na interpretação dos cravistas cariocas Ana Cecília Tavares e Marcelo Fagerlande.
A obra compreende 14 fugas e quatro cânones denominados "contrapunctus", em referência ao "contraponto", para Bach um nome da própria arte de compor.
Nas fugas, um tema é imediatamente imitado em registros mais graves ou agudos e, ao contrário do cânone - a melodia inteira deslocada de si mesma -, permite episódios, transições e toda sorte de especulações geométrico-sonoras.
Em "A Arte da Fuga" tudo isso chega ao paroxismo: Bach nem ao menos indica a instrumentação, como se explorasse o limite possível entre a "música prática", a de vozes e instrumentos, e a "do mundo", que ecoa das proporções das esferas celestes e dos ciclos naturais, tal como Platão (428-347 a.C.), Boecio (480-524) e Zarlino (1517-1590) haviam formulado.
O CD de Tavares e Fagerlande assume corajosamente o risco de traduzir em sons perecíveis o rigor e a densidade dessas matrizes polifônicas: além do entrosamento perfeito (juntar dois cravos não é fácil, pois o ataque tem de ser preciso), o som é claro na medida e encorpado sem perder leveza.
Há pleno domínio dos estilos evocados por Bach (como na "Fuga n. 6", com jeito de abertura francesa), virtuosismo sem excessos ("Fuga n. 9"), e solos marcantes, como Ana Cecília no incrível cânone aumentado em movimento contrário, e Marcelo no dançante "Canon alla Ottava" e na intrincada fuga a três vozes (faixa 10).
O mais interessante da gravação é, no entanto, o diálogo com as estruturas puras, a forma como é preservada a tensão metafísica dessa arte.
A "Fuga n. 4" é tocada como se encerrasse uma obra em quatro movimentos, preparando o terreno para as contrafugas (nas quais o sujeito principal passa a ser imitado de maneira invertida); em seguida, dois cânones separam o trecho anterior das fugas duplas e triplas (uma sai de dentro de outra, mas sem deixar de ser sempre a mesma); e os outros cânones pontuam a chegada das fugas espelhadas (passíveis de inversão exata: a faixa 17 é inversão perfeita da 16, e a 19, da 18).
Sem recusar enfrentar o limiar entre som e puro número, o duo Tavares-Fagerlande confirma que essa arte pode ser "também" música para se ouvir. E, como Bach não concluiu a última fuga, o disco termina abruptamente: si-lá-si-ré.


J. S. BACH "A ARTE DA FUGA"

Artista: Ana Cecília Tavares & Marcelo Fagerlande (dois cravos) Lançamento: Clássicos Quanto: R$ 28, em média Avaliação: ótimo




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