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Crítica: "J. S. Bach "A Arte da Fuga'"
Testamento musical de Bach tem versão para dois cravos
Os cariocas Ana Cecília Tavares e Marcelo Fagerlande
gravam excelente interpretação do ciclo "A Arte da Fuga"
SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA
Ré-lá-fá-ré-dó sustenido; ré-mi-fá; sol-fá-mi-ré: a partir desse tema
simples, Johann Sebastian
Bach (1685-1750) escreveu um
de seus testamentos musicais,
o ciclo "A Arte da Fuga", publicado em 1751 e agora disponível
em excelente CD nacional na
interpretação dos cravistas cariocas Ana Cecília Tavares e
Marcelo Fagerlande.
A obra compreende 14 fugas
e quatro cânones denominados
"contrapunctus", em referência ao "contraponto", para Bach
um nome da própria arte de
compor.
Nas fugas, um tema é imediatamente imitado em registros
mais graves ou agudos e, ao
contrário do cânone - a melodia inteira deslocada de si mesma -, permite episódios, transições e toda sorte de especulações geométrico-sonoras.
Em "A Arte da Fuga" tudo isso chega ao paroxismo: Bach
nem ao menos indica a instrumentação, como se explorasse
o limite possível entre a "música prática", a de vozes e instrumentos, e a "do mundo", que
ecoa das proporções das esferas
celestes e dos ciclos naturais,
tal como Platão (428-347 a.C.),
Boecio (480-524) e Zarlino
(1517-1590) haviam formulado.
O CD de Tavares e Fagerlande assume corajosamente o risco de traduzir em sons perecíveis o rigor e a densidade dessas
matrizes polifônicas: além do
entrosamento perfeito (juntar
dois cravos não é fácil, pois o
ataque tem de ser preciso), o
som é claro na medida e encorpado sem perder leveza.
Há pleno domínio dos estilos
evocados por Bach (como na
"Fuga n. 6", com jeito de abertura francesa), virtuosismo
sem excessos ("Fuga n. 9"), e
solos marcantes, como Ana Cecília no incrível cânone aumentado em movimento contrário,
e Marcelo no dançante "Canon
alla Ottava" e na intrincada fuga a três vozes (faixa 10).
O mais interessante da gravação é, no entanto, o diálogo
com as estruturas puras, a forma como é preservada a tensão
metafísica dessa arte.
A "Fuga n. 4" é tocada como
se encerrasse uma obra em
quatro movimentos, preparando o terreno para as contrafugas (nas quais o sujeito principal passa a ser imitado de maneira invertida); em seguida,
dois cânones separam o trecho
anterior das fugas duplas e triplas (uma sai de dentro de outra, mas sem deixar de ser sempre a mesma); e os outros cânones pontuam a chegada das fugas espelhadas (passíveis de inversão exata: a faixa 17 é inversão perfeita da 16, e a 19, da 18).
Sem recusar enfrentar o limiar entre som e puro número,
o duo Tavares-Fagerlande confirma que essa arte pode ser
"também" música para se ouvir. E, como Bach não concluiu
a última fuga, o disco termina
abruptamente: si-lá-si-ré.
J. S. BACH "A ARTE DA FUGA"
Artista: Ana Cecília Tavares & Marcelo Fagerlande (dois cravos)
Lançamento: Clássicos
Quanto: R$ 28, em média
Avaliação: ótimo
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