|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Para alguns, a guerra é quente e a paz é chata
Um sapateiro parisiense, logo
após a Guerra Franco-Prussiana, de 1870, caiu em depressão
e ameaçou suicidar-se. Não pela
vergonha da derrota diante dos
alemães, derrota que Émile Zola
chamou de "debacle" em famoso
romance. Até que o sapateiro era
patriota, como todos os franceses.
O motivo de sua crise foi mais
prosaico e pessoal. Com o fim da
guerra, ele perdeu encomendas
para o Exército francês, que precisava de botas, botinas, borzeguins, enfim, de um equipamento
específico para calçar adequadamente as tropas.
Antes e depois dele, muita gente
que lucra com a guerra perde com
a paz. Se cada míssil inteligente
ou burro está na decorosa faixa
de US$ 1 milhão, até os busca-pés
das próximas festas juninas serão
inflacionados pela grande farra
da pólvora.
Bertoldo Brecha, que, após a
queda do Muro de Berlim, cada
vez é menos citado, dizia em
"Mãe Coragem" que nada havia
de melhor para a economia e a
ordem de uma nação do que uma
boa guerra -quanto mais longa
e cruel, melhor. Não se tratava de
um paradoxo ou de uma ironia
macabra do teatrólogo alemão.
Ele prova o que afirma no próprio
texto da peça. Durante uma guerra, o Estado toma vergonha e, para não tomar uma surra nos campos de batalha, organiza melhor a
sociedade, o mercado e a si próprio.
Quem discorda do governo responde a uma corte marcial e é fuzilado sumariamente ou enforcado para poupar munição. Os alimentos são estocados e racionados, as safras dirigidas pelo esforço de guerra terão de produzir o
mínimo para alimentar as tropas,
a imprensa e a cultura são patrulhadas para impedir que maus cidadãos, muitas vezes a soldo do
inimigo, façam campanhas pacifistas. A ordem é mantida com severidade, há toque de recolher.
Para ir de uma rua a outra, é necessário um salvo-conduto emitido pela autoridade militar que
toma conta do quarteirão. Todos
vigiam todos porque o inimigo
pode se infiltrar na retaguarda.
Ora, direis, o raciocínio é cínico,
mas a guerra também costuma
ser de um cinismo feroz. O sapateiro de Paris, que vendia milhares de pares de botas para o Exército, não suportou a pasmaceira
dos tempos de paz, quando o cidadão comum ficava com o seu
sapato por anos, apelando periodicamente para as meias-solas,
que rendiam pouco.
Passando do sapateiro parisiense para o complexo industrial-militar dos Estados Unidos, a paz
também é nociva para os negócios. Bem verdade que, com a vitória esmagadora sobre o Iraque,
a paz trará boas compensações
para as economias norte-americana e inglesa, que, juntas, pretendem gerir a reconstrução do
país que destruíram. A briga de
foice entre as empresas que estão
se habilitando a criar praticamente do nada todo um país azeitará muita mão do governo de
Washington e não faltará ao
apoio que dará a Bush e ao Partido Republicano nas próximas
eleições, em 2004.
Além do mutirão humanitário
para reconstruir hospitais, escolas, estradas, pontes, usinas e toda
a infra-estrutura de uma sociedade que precisa comer todos os
dias, os vencedores administrarão a segunda maior reserva de
petróleo do mundo. Renderá
mais do que o canal de Suez
-para lembrar um conflito recente.
Todas as guerras, mesmo as
consideradas "religiosas", tiveram como motivação o lucro econômico, embora os pretextos invocados tenham sido os mais disparatados. O atentado a um arquiduque em Sarajevo foi pretexto para a Primeira Guerra Mundial. E um incidente forjado entre
meia dúzia de soldados na fronteira da Alemanha com a Polônia
foi o pretexto imediato para a Segunda.
Mas não é apenas o complexo
industrial-militar que sai perdendo com a paz. Tampouco os sapateiros. O pessoal da mídia também sofre um baque e, evidentemente, perde um assunto. A revista "Life", num tempo em que ainda não havia TV em circuito comercial, faturou horrores, licitamente, com a cobertura visual da
última guerra mundial. Anos depois, a rede CNN ganhou tudo a
que tinha direito com a guerra do
Golfo, de 1991.
Já nos tempos da antiga Roma,
quando as coisas ficavam difíceis
para o César de plantão, inventava-se uma campanha e foi assim
que Tibério levou as fronteiras do
império tão longe e Marco Aurélio foi morrer às margens do Danúbio, um rio que banhava terras
bárbaras que nada tinham com a
cultura mediterrânea e com o colosso que dominava o mundo.
O próprio César não fez por menos. Ele próprio contou à sua maneira a campanha das Gálias, antes que outros escribas o fizessem.
Pulando no tempo, Winston
Churchill também escreveu uma
história da guerra de que participou, ganhou dinheiro e o Prêmio
Nobel de Literatura.
Evitando mencionar novos
exemplos, reduzo-me à insignificância habitual. Sem Bush, sem
Bagdá, sem mortes e sem armas
inteligentes, só me sobram as armas burras de sempre. Não mais
deverei preocupar-me em saber
onde está Saddam Hussein. Continuarei na minha, preocupado
apenas em saber onde estão os ossos de Dana de Teffé.
Texto Anterior: Crítica: Cristo vive drama de rua sem vício da piedade Próximo Texto: Panorâmica - Justiça: Escritor russo é condenado à prisão Índice
|