São Paulo, quarta-feira, 18 de abril de 2007

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Caso de polícia

Em fase de montagem de "Tropa de Elite", José Padilha quer mostrar como a polícia se torna violenta e é estigmatizada

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Na discussão sobre violência e segurança pública no Brasil, "a polícia não é um detalhe", observa o cineasta José Padilha. Mas, no cinema nacional, quase sempre ela é.
Acostumados ao protagonismo no noticiário cotidiano -matam, morrem, prendem, são presos-, os policiais em geral ocupam lugar lateral e canhestro nos filmes brasileiros.
Na obra do próprio Padilha (até aqui), a regra não foi outra.
No documentário "Ônibus 174", seu filme mais aclamado, é o retrato de uma ação policial desordenada que surge na reconstituição do episódio do seqüestro do coletivo referido no título, no Rio de Janeiro, com o resultado que se sabe: uma passageira feita refém morreu baleada e o seqüestrador perdeu a vida, no caminho para a prisão.
Quando filmava "Ônibus 174", Padilha aproximou-se de policiais militares, especialmente os do Bope (Batalhão de Operações Especiais) e esquadrinhou sua rotina.
"Comecei a reparar que existia um problema interno à instituição policial no Brasil. Esse problema, de certa maneira, é de direitos humanos. Só que é um problema de direitos humanos do policial", diz Padilha.
É desse "problema" que o diretor trata em seu novo filme, "Tropa de Elite", que está sendo montado em São Paulo e do qual a Folha assistiu a trechos. Feito com R$ 10 milhões, o longa tem estréia prevista para outubro. De seu roteiro inicial, assinado por Padilha, Bráulio Mantovani ("Cidade de Deus") e Rodrigo Pimentel, derivou o projeto do livro "Elite da Tropa" (Objetiva, 2006), de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel.
"Tropa de Elite", a primeira ficção de Padilha, guarda um paralelo com "Ônibus 174".
Enquanto o documentário se debruçou sobre a trajetória de um jovem delinqüente, sobrevivente ao massacre da Candelária, para demostrar que o Estado, pela forma como (des)assiste crianças carentes "produz indivíduos violentos", a ficção pretende mostrar que é o Estado quem produz também "uma polícia violenta ou corrupta".
Na entrevista a seguir, Padilha fala de como "a violência se presta à dramaturgia", comenta o roubo de armas das filmagens de "Tropa de Elite", que o obrigou a paralisá-las, e explica por que não faria um filme a respeito dos assassinos do garoto João Hélio. Acompanhe.

 

FOLHA - Apesar de ser uma ficção, "Tropa de Elite" é o seu ponto de vista sobre a questão da segurança pública no Brasil?
PADILHA -
Interessa-me a perspectiva sociológica do filósofo [austríaco] Karl Popper [1902-94], que diz que um modo de olhar os processos sociais é assumir as instituições que estão dadas e ver, num determinado espaço de tempo, como elas interagem com as pessoas e que efeitos têm sobre elas.
Fiz isso em "Ônibus 174" com um menino de rua. Agora me pergunto que efeito a instituição polícia tem nas pessoas que pretendem ser policiais.
O policial vive um problema de direitos humanos. A fórmula se retroalimenta: o Estado desaparelha os policiais, remunera-os mal. Eles tendem a ser corruptos ou violentos ou ineficientes. A população percebe isso e os estigmatiza. A idéia do filme é mostrar isso.

FOLHA - De que modo?
PADILHA -
Conta a história de duas pessoas que queriam ser policiais -e existem pessoas que querem ser policiais por ideal- entrando no batalhão. Em paralelo, a história de alguém que está no Bope há muito tempo e está desiludido, porque vê que aquela violência toda não resolve problema nenhum. São 700 favelas. Matar traficante não resolve.

FOLHA - Faria um filme sobre os assassinos do garoto João Hélio?
PADILHA -
Fugi desse assunto. Tenho problema com criança.
Não estou dizendo que um tiro asséptico na cabeça é um crime aceitável, mas certos tipos de crime embrulham o estômago.
Não tenho dificuldade de formular teorias sobre o comportamento de alguém como o cara que matou João Hélio. Até porque é um comportamento recorrente na história. A barbárie é um potencial da espécie humana. A questão que se coloca é: em certas civilizações, esse traço humano não aflora toda hora. Em outras, está presente no cotidiano. Isso é ruim.
Não digo que não faria um filme sobre esse assunto. Mas certamente não faria um filme sobre o caso do João Hélio.

FOLHA - Com seus filmes sobre violência no Brasil, os cineastas não contribuem para formar um clichê do país?
PADILHA -
Nem todos os meus filmes são sobre violência. Por algum motivo, meus filmes sobre violência são mais vistos. A violência se presta à dramaturgia, não só no cinema. Dramaturgia tem a ver com conflito. A violência é a exacerbação do conflito. Em histórias violentas você encontra os elementos necessários para fazer um bom filme. É verdade. Não adianta mentir sobre isso.
Há risco de transformar a violência no Brasil num clichê?
Se os filmes forem bons, não. Bons filmes não viram clichê.

FOLHA - O roubo de 30 armas que seriam usadas em cenas de "Tropa de Elite" foi o pior momento das filmagens?
PADILHA -
Não. O pior momento das filmagens foi depois. O roubo das armas foi um momento muito tenso. Foi no final de um dia de filmagens. Cinco pessoas da equipe foram seqüestradas por traficantes armados, no carro que transportava as armas cenográficas.
Isso criou um problema de segurança pública, envolvendo o Exército (que autorizou o uso das armas); a polícia civil (que instaurou investigação); a Polícia Militar (que autorizou as filmagens nas locações). Concordo que um problema de segurança pública é mais importante do que um filme.
Paramos o filme. A polícia entrou na favela. A locação acabou. O equipamento ficou lá em cima. O dinheiro foi acabando. O filme exigiu grande coragem da equipe [para continuar]. As pessoas tiveram essa coragem. Um ou outro ficou pelo caminho. Eu entendo. Mas a grande maioria ficou firme e forte. Sou orgulhoso da minha equipe. São pessoas corajosas.
E devo muito ao meu sócio e produtor, Marcos Prado. Ele foi fundamental para o filme.

FOLHA - Acredita na notícia divulgada este mês de que as armas foram recapacitadas pelo tráfico?
PADILHA -
Pergunta difícil. Qual é a notícia? A notícia é que um traficante declarou que as armas foram recuperadas [estavam adaptadas para dar tiros de festim apenas] e usadas pelo tráfico. Se eu acredito que o traficante declarou? Acredito.

FOLHA - Como avalia as políticas de segurança pública no Brasil?
PADILHA -
A segurança pública é um problema que os governos têm medo tremendo de enfrentar. Não é seriamente enfrentado por governo nenhum, nem em nível federal nem estadual.
O Brasil lida com o problema da segurança pública como lidou com o problema dos controladores de vôo. Não há disposição política forte o suficiente para atacar efetivamente o problema. Não existe um [Rudolph] Giuliani [ex-prefeito de Nova York] no Brasil, que vai reformar a polícia.


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