São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2000


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MÚSICA

Expresso de Gil desembarca na estação Luiz Gonzaga

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

F ilho do baião e da decadência do baião -que já teve, entre outros apelidos, o de bossa nova-, o baiano Gilberto Gil, 57, se despe de tropicalismos demais para revisitar a tradição agreste do pernambucano Luiz Gonzaga (1912-89) em seu novo álbum, "Gilberto Gil e as Canções de "Eu Tu Eles'".
Como sempre, nos tropicalismos, tudo vem respingado de marketing. O mesmo pacotão vende o filme de Andrucha Waddington, a grife da Conspiração Filmes, a imagem-Globo de Regina Casé, a trilha que não é trilha de Gil, naquele já bem conhecido laço de "vende no meu que eu vendo na sua" e pé na estrada.
De trilha do filme mesmo, só há duas inéditas de Gil, "O Amor Daqui de Casa" e "As Pegadas do Amor", a vinheta incidental "Casinha Feliz" e "Lamento Sertanejo" (75). O resto -as do repertório de Luiz Gonzaga, mais uma e outra (leia quadro à esquerda)- aparece, sim, no filme, mas na voz do próprio Gonzaga ou de conjuntos locais de Juazeiro.
Bem, isso não significa muito fora dos domínios do marketing, a não ser que talvez restrinja em certa medida o poder de alcance do disco. Pois se trata de um produto forte na carreira de Gil, uma oportunidade dialética a que ele nunca havia antes se atirado com tanta fome.
Selecionando o clássico de Gonzagão -estão ali "Asa Branca", "Qui Nem Jiló", "Juazeiro"...-, não resulta "inventeiro" e abre a cortina para primeiro e imediato estudo: o sobre a evolução interpretativa no pop brasileiro.
O que em Gonzagão era sertanejo e abrutalhado volta aqui na interpretação doce e urbana -pós-bossa nova- de Gil, e a adaptação é justa. Tanto os baiões do sanfoneiro eram acomodáveis às modernizações tropicalistas, quanto Gil aos quase 60 veste bem o terno do tradicionalismo.
Belos "duelos" se dão, nesse aspecto, nas faixas de dor, como "Juazeiro" ("ai, Juazeiro, eu num guento mais doer/ ai, Juazeiro, eu prefiro inté morrer"), "Baião da Penha" (que Caetano gravara em 91, também em registro de dor) e, sobretudo, "Assum Preto".
Essa última tem de peitar a assombrosa versão de 71 de Gal Costa, mas se sai tesa, credenciada a virar clássico MPB como a outra. E Gonzagão, o bruto, volta à memória como fornecedor de um dos mais delicados pratos musicais que há a quem deseje a audácia interpretativa. Nossos tropicalistas, como sempre, desejam.
Nos arranjos urdidos, a dialética se avoluma. Sanfonas (em "O Amor Daqui de Casa", Gil volta a suas origens, abraçando de novo o instrumento), zabumbas, triângulos, ganzás, caxixis e pandeiros equilibram-se entre a influência da invenção de Gonzaga e a invenção pós-tropicalista, do Gil de "Expresso 2222" (72). Da sinfonia agreste, vão aos poucos se insinuando bandolins, violões, guitarras, até um pós-moderno Theremin em "Pegadas do Amor".
O confronto se cristaliza, é claro, nas inéditas. "O Amor Daqui de Casa" principia épica e contundente: "A menstruação não desce/ a chuva não dá sinal", antológico paralelo entre aridez do solo e fertilidade do útero, entre miséria e miséria. O "baião atemporal" (porque plantado no muro onde não há espaço nem tempo) abre picada para "As Pegadas do Amor", em que o tema central é a brutalização.
Em diálogo tanto com a brutalidade seca do baião quanto com o embrutecimento mais recente de axé e outras modas, guarda-se num enfadonho refrão de berros de bode -Gil não toma partido.
Enfim, é a entrada de Gil nos anos 2000. Premeditadamente ou não, o expresso 2222, que partia de Bonsucesso para depois do ano 2000, veio desembarcar na estação Luiz Gonzaga. O bom dos tropicalistas é que, além de povoar o mundo de música, ainda dão pano farto para pensar lá no fundo.


Gilberto Gil e as Canções de "Eu Tu Eles"
   
Lançamento: GG/Warner
Quanto: R$ 20, em média




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