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MÚSICA
Expresso de Gil desembarca na estação Luiz Gonzaga
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
F ilho do baião e da decadência do baião -que já teve, entre outros apelidos, o de bossa nova-, o baiano Gilberto Gil, 57, se
despe de tropicalismos demais
para revisitar a tradição agreste
do pernambucano Luiz Gonzaga
(1912-89) em seu novo álbum,
"Gilberto Gil e as Canções de "Eu
Tu Eles'".
Como sempre, nos tropicalismos, tudo vem respingado de
marketing. O mesmo pacotão
vende o filme de Andrucha Waddington, a grife da Conspiração
Filmes, a imagem-Globo de Regina Casé, a trilha que não é trilha
de Gil, naquele já bem conhecido
laço de "vende no meu que eu
vendo na sua" e pé na estrada.
De trilha do filme mesmo, só há
duas inéditas de Gil, "O Amor Daqui de Casa" e "As Pegadas do
Amor", a vinheta incidental "Casinha Feliz" e "Lamento Sertanejo" (75). O resto -as do repertório de Luiz Gonzaga, mais uma e
outra (leia quadro à esquerda)-
aparece, sim, no filme, mas na voz
do próprio Gonzaga ou de conjuntos locais de Juazeiro.
Bem, isso não significa muito
fora dos domínios do marketing,
a não ser que talvez restrinja em
certa medida o poder de alcance
do disco. Pois se trata de um produto forte na carreira de Gil, uma
oportunidade dialética a que ele
nunca havia antes se atirado com
tanta fome.
Selecionando o clássico de Gonzagão -estão ali "Asa Branca",
"Qui Nem Jiló", "Juazeiro"...-,
não resulta "inventeiro" e abre a
cortina para primeiro e imediato
estudo: o sobre a evolução interpretativa no pop brasileiro.
O que em Gonzagão era sertanejo e abrutalhado volta aqui na
interpretação doce e urbana
-pós-bossa nova- de Gil, e a
adaptação é justa. Tanto os baiões
do sanfoneiro eram acomodáveis
às modernizações tropicalistas,
quanto Gil aos quase 60 veste bem
o terno do tradicionalismo.
Belos "duelos" se dão, nesse aspecto, nas faixas de dor, como
"Juazeiro" ("ai, Juazeiro, eu num
guento mais doer/ ai, Juazeiro, eu
prefiro inté morrer"), "Baião da
Penha" (que Caetano gravara em
91, também em registro de dor) e,
sobretudo, "Assum Preto".
Essa última tem de peitar a assombrosa versão de 71 de Gal
Costa, mas se sai tesa, credenciada
a virar clássico MPB como a outra. E Gonzagão, o bruto, volta à
memória como fornecedor de um
dos mais delicados pratos musicais que há a quem deseje a audácia interpretativa. Nossos tropicalistas, como sempre, desejam.
Nos arranjos urdidos, a dialética
se avoluma. Sanfonas (em "O
Amor Daqui de Casa", Gil volta a
suas origens, abraçando de novo
o instrumento), zabumbas, triângulos, ganzás, caxixis e pandeiros
equilibram-se entre a influência
da invenção de Gonzaga e a invenção pós-tropicalista, do Gil de
"Expresso 2222" (72). Da sinfonia
agreste, vão aos poucos se insinuando bandolins, violões, guitarras, até um pós-moderno Theremin em "Pegadas do Amor".
O confronto se cristaliza, é claro,
nas inéditas. "O Amor Daqui de
Casa" principia épica e contundente: "A menstruação não desce/
a chuva não dá sinal", antológico
paralelo entre aridez do solo e fertilidade do útero, entre miséria e
miséria. O "baião atemporal"
(porque plantado no muro onde
não há espaço nem tempo) abre
picada para "As Pegadas do
Amor", em que o tema central é a
brutalização.
Em diálogo tanto com a brutalidade seca do baião quanto com o
embrutecimento mais recente de
axé e outras modas, guarda-se
num enfadonho refrão de berros
de bode -Gil não toma partido.
Enfim, é a entrada de Gil nos
anos 2000. Premeditadamente ou
não, o expresso 2222, que partia
de Bonsucesso para depois do ano
2000, veio desembarcar na estação Luiz Gonzaga. O bom dos tropicalistas é que, além de povoar o
mundo de música, ainda dão pano farto para pensar lá no fundo.
Gilberto Gil e as Canções de "Eu Tu Eles"
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Lançamento: GG/Warner
Quanto: R$ 20, em média
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