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CONTARDO CALLIGARIS
O risco de se suicidar feliz
Em julho de 1997, Matthew
Miller, 13 anos, de Kansas
City, se enforcou no seu quarto.
Segundo os pais, ele nunca demonstrara tendências suicidas.
Há uma semana ele tomava Zoloft -um antidepressivo da família do Prozac- e desde então
manifestara uma crescente agitação.
Ao que parece, 1% dos sujeitos
que tomam esse tipo de antidepressivos experienciam angústia
a ponto de não conseguir ficar parados, eventualmente acompanhada de tendências suicidas.
Nesses casos, é preciso parar a medicação ou compensá-la com calmantes. No mundo, 35 milhões de
pessoas usam Prozac (sem contar
os usuários de Zoloft e Paxil): 1%
é bastante gente.
Os pais de Matthew estão processando a Pfizer (fabricante do
Zoloft). O processo alimenta um
debate sobre os efeitos secundários dos antidepressivos.
Há pesquisas mostrando que
eventuais tendências suicidas são
efeitos secundários significativos
do Prozac e semelhantes. Elas poderiam ser discutidas, mas tanto
faz a esta altura. Pois houve uma
revelação: em 1990, um comunicado interno da Lilly (fabricante
do Prozac) pressionava seus próprios funcionários para que eles
alterassem a descrição dos efeitos
secundários negativos do Prozac,
pedindo explicitamente que a expressão "tentativa de suicídio"
fosse substituída por "overdose" e
"idéias de suicídio", por "depressão". A Lilly, então, colocou em
guarda os médicos e os usuários
de Prozac contra possíveis angústias e agitações, mas não contra
riscos ou tendências suicidas.
Será que agora a verdade triunfou? Mais ou menos. Por que essa
história sai logo agora? A patente
do Prozac acaba no ano que vem.
A partir de 2001, qualquer um poderá fabricar um remédio igual
ao Prozac, e mais barato. Ora, a
Lilly (que deve ao Prozac 25% de
seus lucros) está anunciando um
novo antidepressivo comparável
ao Prozac, mas -olhe só!- sem
os temíveis efeitos secundários. A
empresa anuncia que este novo
remédio, contrariamente ao Prozac, não produz "pensamentos
suicidas e de automutilação". É
engraçado: esses efeitos secundários do Prozac foram silenciados
até agora e são reconhecidos logo
quando a Lilly perde a patente do
Prozac e quer substituí-lo por um
novo remédio patenteado.
Mas esse é apenas o lado sórdido da história. O lado triste é que,
no debate sobre os efeitos secundários dos antidepressivos, adversários e amigos da Pfizer e da Lilly
parecem compartilhar uma mesma mediocridade. Há os que
acreditam que a pílula possa induzir ao suicídio e os que pensam
que ela só faz a gente feliz.
Ora, não sei porque Matthew se
suicidou. Mas certamente o Zoloft
sozinho não foi a causa do suicídio do garoto. Como tampouco
seria a causa de seu bem-estar, se
tivesse funcionado.
Um exemplo vai explicar melhor. Imaginemos alguém preocupado com sua baixa auto-estima.
É difícil subir na vida se achando
uma nulidade. Ele recorre ao Prozac (prescrição hoje comum para
baixa auto-estima). Por efeito
químico do remédio, o sujeito
passa a se considerar com mais
carinho e chega a convencer seus
superiores que ele é um craque.
Ótimo. Fim da história? Infelizmente não. Na vida psíquica, nada chega como um relâmpago.
Mesmo os sintomas mais sofridos
e invalidantes sempre têm uma
razão de ser, uma função que
aparece quando a gente os situa
no conjunto da vida psíquica.
Continuando o exemplo: de onde
vinha a baixa auto-estima de
nosso sujeito? Imaginemos uma
banalidade: quando ele era
criança, sua mãe se deprimiu e
não quis mais se ocupar dele. E
daí?, perguntarão os medíocres
que não querem perder tempo
com essas questões. Isso, dirão, só
prova que uma intervenção química resolve até a velha história
de que a mãe não ama a gente o
suficiente. E pronto.
Acontece que os homens são
mais complexos do que isso. E
não perdem a ocasião de acrescentar significados a cada evento
da vida. No nosso exemplo, provavelmente o sujeito se consideraria culpado desde criança pela depressão de sua mãe. Acharia que
ele não soube diverti-la ou seduzi-la o suficiente para que ela gostasse da vida. Uma culpa como essa
encontra alívio na baixa auto-estima. Ou seja, se considerando
uma porcaria, o sujeito expia sua
culpa, convive melhor com ela.
Nessa situação, a pílula chega e
melhora a auto-estima de nosso
sujeito, que então vai subir na vida. Só que sua baixa auto-estima
era um jeito de satisfazer às exigências de uma culpa violenta.
Uma vez liberado desse sintoma,
ele vive feliz e bem-sucedido, mas
pode se jogar pela janela porque
sua culpa exige de repente uma
outra expiação.
Em suma, ele está feliz e vai se
suicidar. Como a felicidade hoje é
uma obrigação social, dá para dizer (ironicamente) que essa solução representa um certo progresso.
Isso não significa que a terapia
química deva ser rejeitada ou evitada. Mas quantas pessoas terão
de se suicidar felizes para que a
prescrição química seja obrigatoriamente acompanhada por uma
orientação ou supervisão psicoterapêutica que leve em conta a
complexidade da dinâmica subjetiva?
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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