São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS

O risco de se suicidar feliz

Em julho de 1997, Matthew Miller, 13 anos, de Kansas City, se enforcou no seu quarto. Segundo os pais, ele nunca demonstrara tendências suicidas. Há uma semana ele tomava Zoloft -um antidepressivo da família do Prozac- e desde então manifestara uma crescente agitação.
Ao que parece, 1% dos sujeitos que tomam esse tipo de antidepressivos experienciam angústia a ponto de não conseguir ficar parados, eventualmente acompanhada de tendências suicidas. Nesses casos, é preciso parar a medicação ou compensá-la com calmantes. No mundo, 35 milhões de pessoas usam Prozac (sem contar os usuários de Zoloft e Paxil): 1% é bastante gente.
Os pais de Matthew estão processando a Pfizer (fabricante do Zoloft). O processo alimenta um debate sobre os efeitos secundários dos antidepressivos.
Há pesquisas mostrando que eventuais tendências suicidas são efeitos secundários significativos do Prozac e semelhantes. Elas poderiam ser discutidas, mas tanto faz a esta altura. Pois houve uma revelação: em 1990, um comunicado interno da Lilly (fabricante do Prozac) pressionava seus próprios funcionários para que eles alterassem a descrição dos efeitos secundários negativos do Prozac, pedindo explicitamente que a expressão "tentativa de suicídio" fosse substituída por "overdose" e "idéias de suicídio", por "depressão". A Lilly, então, colocou em guarda os médicos e os usuários de Prozac contra possíveis angústias e agitações, mas não contra riscos ou tendências suicidas.
Será que agora a verdade triunfou? Mais ou menos. Por que essa história sai logo agora? A patente do Prozac acaba no ano que vem. A partir de 2001, qualquer um poderá fabricar um remédio igual ao Prozac, e mais barato. Ora, a Lilly (que deve ao Prozac 25% de seus lucros) está anunciando um novo antidepressivo comparável ao Prozac, mas -olhe só!- sem os temíveis efeitos secundários. A empresa anuncia que este novo remédio, contrariamente ao Prozac, não produz "pensamentos suicidas e de automutilação". É engraçado: esses efeitos secundários do Prozac foram silenciados até agora e são reconhecidos logo quando a Lilly perde a patente do Prozac e quer substituí-lo por um novo remédio patenteado.
Mas esse é apenas o lado sórdido da história. O lado triste é que, no debate sobre os efeitos secundários dos antidepressivos, adversários e amigos da Pfizer e da Lilly parecem compartilhar uma mesma mediocridade. Há os que acreditam que a pílula possa induzir ao suicídio e os que pensam que ela só faz a gente feliz.
Ora, não sei porque Matthew se suicidou. Mas certamente o Zoloft sozinho não foi a causa do suicídio do garoto. Como tampouco seria a causa de seu bem-estar, se tivesse funcionado.
Um exemplo vai explicar melhor. Imaginemos alguém preocupado com sua baixa auto-estima. É difícil subir na vida se achando uma nulidade. Ele recorre ao Prozac (prescrição hoje comum para baixa auto-estima). Por efeito químico do remédio, o sujeito passa a se considerar com mais carinho e chega a convencer seus superiores que ele é um craque. Ótimo. Fim da história? Infelizmente não. Na vida psíquica, nada chega como um relâmpago. Mesmo os sintomas mais sofridos e invalidantes sempre têm uma razão de ser, uma função que aparece quando a gente os situa no conjunto da vida psíquica. Continuando o exemplo: de onde vinha a baixa auto-estima de nosso sujeito? Imaginemos uma banalidade: quando ele era criança, sua mãe se deprimiu e não quis mais se ocupar dele. E daí?, perguntarão os medíocres que não querem perder tempo com essas questões. Isso, dirão, só prova que uma intervenção química resolve até a velha história de que a mãe não ama a gente o suficiente. E pronto.
Acontece que os homens são mais complexos do que isso. E não perdem a ocasião de acrescentar significados a cada evento da vida. No nosso exemplo, provavelmente o sujeito se consideraria culpado desde criança pela depressão de sua mãe. Acharia que ele não soube diverti-la ou seduzi-la o suficiente para que ela gostasse da vida. Uma culpa como essa encontra alívio na baixa auto-estima. Ou seja, se considerando uma porcaria, o sujeito expia sua culpa, convive melhor com ela.
Nessa situação, a pílula chega e melhora a auto-estima de nosso sujeito, que então vai subir na vida. Só que sua baixa auto-estima era um jeito de satisfazer às exigências de uma culpa violenta. Uma vez liberado desse sintoma, ele vive feliz e bem-sucedido, mas pode se jogar pela janela porque sua culpa exige de repente uma outra expiação.
Em suma, ele está feliz e vai se suicidar. Como a felicidade hoje é uma obrigação social, dá para dizer (ironicamente) que essa solução representa um certo progresso.
Isso não significa que a terapia química deva ser rejeitada ou evitada. Mas quantas pessoas terão de se suicidar felizes para que a prescrição química seja obrigatoriamente acompanhada por uma orientação ou supervisão psicoterapêutica que leve em conta a complexidade da dinâmica subjetiva?


E-mail: ccalligari@uol.com.br



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