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FESTIVAL DE CANNES
Longa de Fernando Meirelles, fora de competição, tem recepção pouco calorosa em exibição para crítica
Violência se autojustifica em "Cidade de Deus"
ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
"Cidade de Deus", de Fernando
Meirelles, um dos dois filmes brasileiros em Cannes, foi exibido
ontem para a crítica internacional. Recebeu aplausos modestos,
mas a platéia de críticos não é a
melhor para avaliar o seu impacto
no público, que deve ser grande.
O filme tem uma narração ágil,
fácil e cheia de pequenas surpresas. Os personagens são fortes e
cativantes. A maioria dos atores é
excepcional. A linguagem presta
menos contas à tradição do cinema do que às flexões estéticas do
videoclipe. A sua distribuidora será a internacional Miramax.
A história é a de uma geração de
moradores da favela carioca Cidade de Deus e sobre o modo como
a pequena marginalidade dos
anos 60 se transformou no banditismo profissional de nossos dias.
Baseado na obra de Paulo Lins,
ele próprio morador de Cidade de
Deus, o filme conseguiu condensar de modo interessante o vasto
painel de vidas e situações do livro, mas ao custo de esvaziar sua
densidade social e psicológica.
O filme não vai além da ilustração daquilo que já foi narrado por
Lins -com sua escrita que é testemunho de uma experiência-,
sem acrescentar, pelo cinema,
coisa substancial à compreensão
da marginalidade e dos conflitos
brasileiros, como fez o livro.
Do livro, "Cidade de Deus", de
fato, por não trazer experiências
nem idéias próprias, parasita o
universo da favela e da marginalidade para realizar uma espécie de
filme de ação bastante fechado em
si mesmo. Não é à toa que não
existe quase nenhum mundo exterior à favela no filme, fora a polícia e alguns personagens da classe
média, todos esquemáticos.
É essa uma de suas principais
fraquezas: transformar a favela
num sistema auto-explicativo
com seus dramas engendrados
uns nos outros e onde, portanto, a
violência se autojustifica. Talvez
seja mais fácil do ponto de vista
narrativo e confortável no aspecto
moral circunscrever a favela para
o espectador. Mas é também um
meio de não perturbá-lo em sua
responsabilidade social.
Escândalo religioso
O catolicismo é impostura, a fé é
investimento egoísta, a sociedade
italiana é uma trama conspiratória, a Itália é um monumento destinado à ruína, por escassez de liberdade espiritual. O diagnóstico
é do diretor italiano Marco Bellocchio, no provocador "O Sorriso de Minha Mãe", como é chamado no festival.
Na Itália, o filme ganhou o nome de "A Hora da Religião". Considerado blasfemo, foi proibido
para menores de 14 anos, atacado
pelo Vaticano, boicotado em salas
de cinema de proprietários católicos, que não são poucas no país, e
por conta disso tudo foi prejudicado na sua exibição na TV.
É uma obra de mestre, de uma
exatidão narrativa e conceitual à
toda prova. Os planos são concisos, diretos, demolidores, no limite entre o conto moral e a demonstração crítica. Os personagens transbordam de vida e veracidade, ao mesmo tempo em que
funcionam como peças de um estratagema cruel que interroga
sem parar o funcionamento da religião católica e da fé em geral.
A história funciona como um
misto de filme de suspense e drama mafioso. Um artista plástico
ateu é de repente envolvido numa
trama feita às suas costas pela família e a igreja para beatificar a
sua mãe, morta a facadas por um
de seus irmãos, doente mental.
A família depende dele para arrancar do irmão enlouquecido a
confirmação da "cena original"
da santidade: a mãe gritando:
"Blasfêmia, blasfêmia", com um
sorriso nos lábios e o punhal atingindo-a no peito. O processo de
beatificação é tratado pela família
como uma conspiração para resgatar as honrarias que ela perdeu
com o passar dos anos.
O artista, que considera a sua
mãe uma "estúpida", tem dela a
mesma forma do sorriso. "Só que
o sorriso de sua mãe era passivo, o
seu não", diz uma de suas tias. O
sorriso restará um dos enigmas
do filme, sinal tanto de submissão
quanto de indiferença e liberdade.
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