São Paulo, sábado, 18 de maio de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"PINÓQUIO"

Aventuras do boneco chegam às livrarias, no texto original, de Collodi, e em análise, de Giorgio Manganelli

Livro explora a doída trilha da marionete

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A mais típica das fábulas. Eis uma definição que acomoda confortavelmente "As Aventuras de Pinóquio", tal como originalmente concebidas pelo italiano Carlo Collodi (1826-1910), em 1883.
Afinal, o que é o livro de Collodi senão uma história contada com a nítida intenção de ilustrar preceitos morais a meninos travessos?
O que ele pode ser, além de historieta moral, está em "Pinóquio: Um Livro Paralelo", de Giorgio Manganelli (1922-1990).
Livro original -em rara versão integral- e livro paralelo ganham edição nacional neste mês. Para cada capítulo do "Pinóquio" de Collodi há um capítulo do "Pinóquio" de seu paisano Manganelli, que analisa as aventuras da marionete esculpida por Gepeto, para "dançar, esgrimir e dar saltos-mortais", mas que prefere aprontar estripulias mundo afora.
Como cabe a uma típica fábula, o mundo de Pinóquio tem lógica própria, à qual o leitor se entrega sem questionar. Nele, comida some e surge do nada e os animais têm fala. Mais: até um pedaço de "madeira para queimar" tem voz antes mesmo de virar boneco.
Faltam ao ambiente de Pinóquio, porém, característicos reis e castelos: em seu lugar, noites frias, velhice, pobreza. O percurso da marionete não leva ao casamento com a princesa, mas a ele mesmo, transcendida sua essência de "duríssima madeira". Em suma, fala de superar a fantasiosa infância para ser um humano nobre, apesar das dores do crescimento.
E como elas doem. Sobre o leitor infantil, a fábula age, ainda hoje, de modo eficiente. Impossível não se afligir com o caminho tortuoso de Pinóquio: as "sevícias morais" impingidas ao boneco transbordam para quem lê. Por que Pinóquio não aprende e nos salva de sofrer com ele?
Porque, leitor, conforme nos lembra o livro de Manganelli, as aventuras da marionete só avançam quando são desventuras. Sempre que Pinóquio tenta ser "bom menino", a narrativa estanca, só retornando na próxima vez em que o boneco se deixa levar pelas promessas de vida fácil.

Uma leitura possível
"Não sei o que é um livro, mas acho que agiam sabiamente aqueles cuneiformes que, por meio da pontiaguda grafia, gravavam espessos e argilosos tijolos cozidos: cada página, trezentas das nossas", pondera Manganelli.
E segue: "É engano tipográfico que uma página tenha a tênue espessura na qual, de ambos os lados, se imprime. Diria eu que a página começa a partir daquela tênue superfície em branco e preto, mas se estende, se dilata, se aprofunda, e até emerge, se encrespa e escorre fora das margens". Essa é a premissa de seu livro paralelo. Ele é uma leitura possível de "Pinóquio".
As chaves de Manganelli podem estar em detalhes como as cores, as intempéries constantes ou a indumentária dos personagens. Um dos pontos em que o crítico mais insiste, porém, é a extensa variedade de animais a que o boneco de madeira (vegetal, portanto) é comparado, em suas desabaladas carreiras: lépido, Pinóquio é como lebre, cabrito, rã.
Mas para se aproximar do humano, sabemos, será preciso mais esforço do que correr e saltar.
Manganelli explicita de que é feita a doída trilha de Pinóquio: de um fio estendido sobre o limiar entre vida e morte -até que a morte sobrevenha, mas para dar lugar à vida, na mutação final.
Exercício interessante resulta de intercalar a leitura dos dois livros, capítulo a capítulo.
Manganelli fornece uma espécie de "caminho" para fazer um corte transversal na fábula, para além da aceitação de seu mundo fantasioso, levando a significados ocultos. Logo o leitor se pega "adivinhando" o que o crítico dirá em sua análises ou até fazendo ligações que ele mesmo não sugere.
Essa é a lição do seu "livro paralelo", e não vale só para "Pinóquio": cada leitor constrói sua leitura, própria, única e irrepetível.


"AS AVENTURAS DE PINÓQUIO" - ("Le Avventure di Pinocchio", 1883). De: Carlo Collodi. Editora: Companhia das Letrinhas (tel. 0/xx/11/ 3167-0801, www.companhiadasletras.com.br). Tradução: Marina Colasanti. 192 págs. R$ 22,50.

"PINÓQUIO: UM LIVRO PARALELO" - ("Pinocchio; Un Libro Parallelo", 1977). De: Giorgio Manganelli. Editora: Companhia das Letras (idem). Tradução: Eduardo Brandão. 208 págs. R$ 27,50.


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