São Paulo, quarta-feira, 18 de maio de 2005

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DANÇA

"Erendira", montagem do coreógrafo brasileiro, abre festival internacional em Veneza, que será precedido por debates

Ismael Ivo questiona os limites do corpo

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

"O corpo em ataque, o corpo implodindo e explodindo como a expressão de hoje; o corpo na era do terror, ainda aprisionado e tentando se expressar de várias formas." São palavras do bailarino brasileiro Ismael Ivo, diretor da área de dança na Bienal de Veneza. Partindo das propostas da Bienal, como janela de arte progressiva, ele montou o 3º Festival Internacional de Dança Contemporânea - Body Attack, descrito como "um olhar sobre o corpo no nosso tempo".
Em entrevista à Folha durante um ensaio na Oficina Cultural Oswald de Andrade, Ivo, 50, questionou o papel de um festival de dança, comentou a programação da Bienal e falou de sua nova criação, "Erendira".
Alternando a Bienal de Artes Visuais com a de Arquitetura, Veneza traz todos os anos uma programação excepcional de dança, música e teatro, explica Ivo. O festival começa simultaneamente à abertura da 51ª Mostra Internacional de Artes Visuais (de 8/6 a 2/7). Por lá passarão 14 companhias de diversas partes do mundo -da África às Américas, da Europa ao Oriente Médio-, apresentando de rituais tribais à arte de vanguarda e incluindo algumas estréias mundiais. "O corpo teatral, o corpo feminino, o corpo em relação às artes visuais, o corpo com seus limites e expansões são questões que perpassarão a mostra."
Fugindo da idéia de "festival que apenas coleciona espetáculos" e contrariamente ao circuito fechado dos festivais europeus, "que trazem sempre os mesmos nomes", Ivo resolveu organizar um simpósio antes do festival, "não para encontrar soluções, mas para fazer um trabalho de observação sobre o corpo do terceiro milênio, o corpo global". Será um encontro interativo, com participações teóricas e momentos performáticos, refletindo política, social e artisticamente a dança (dias 28 e 29/5).
O espírito provocador é da essência do encontro: "Convidei uma coreógrafa de Istambul, por exemplo, que fará um depoimento sobre sua experiência na Turquia e no Irã no que toca ao corpo feminino na sociedade islâmica -como o corpo é reprimido, vendado, escondido". Na seqüência, entra um grupo de Istambul, com uma coreografia sobre o tema. Também a atriz Antonia San Juan -conhecida de um dos últimos filmes de Almodóvar, "Tudo Sobre Minha Mãe"- abordará o corpo transexual. Da Nova Zelândia, onde há uma tradição tribal em que o sétimo homem da família é educado como mulher, vem um grupo que trabalha o papel feminino integrado ao corpo masculino. "Estou tentando refletir sobre formas radicais do uso do corpo", diz Ivo.
Ainda nesse prólogo do festival, será vista uma estréia mundial do grande coreógrafo norte-americano (radicado na Alemanha) William Forsythe, intitulada "Você me Fez um Monstro".
O início de festival propriamente dito será com a estréia de "Erendira", de Ivo, inspirada no realismo mágico de Gabriel García Márquez. Em seguida, a céu aberto, acontece uma apresentação do "Ritual do Fogo" de Xavantes do Mato Grosso. Por que os Xavantes? "Queria levar para Veneza uma comunidade que ainda hoje tem uma dimensão física muito viva, tanto do ponto de vista corporal quanto cultural." O público poderá ver também a pintura corporal preparatória ao ritual.
Em "Erendira", São Paulo é o cenário de inspiração, "onde os dançarinos vêm absorver idéias para a peça". Foram 40 dias aqui; e os últimos 20 serão em Veneza. No elenco, estão sete dançarinos (um tailandês, um coreano, quatro italianos e uma francesa) e uma atriz brasileira, Cleide Eunice Queiros.
O trabalho tem três níveis: o primeiro é a "Erendira" de Márquez; o segundo, a cidade de São Paulo; e o terceiro, a biografia -a identificação pessoal de cada bailarino dentro do processo de criação. Há um trecho do espetáculo onde cada um fala de suas impressões rápidas da chegada: "Quem você é, como chegou aqui, como vê a cidade e o trabalho". Segundo Ivo, dia após dia os bailarinos "começam a entender, sair duma fantasia do que é o Brasil e cair na realidade".
"Erendira" é a história de uma menina de 12 anos que coloca fogo acidentalmente na casa onde mora com sua avó. Esta decide que Erendira deverá pagar pelo prejuízo e a introduz na prostituição. Depois de anos, ela se apaixona e com o namorado tenta envenenar a avó. "Estou atualizando e multiplicando a personagem Erendira dentro da cidade de São Paulo. A dança hoje tem que se valorizar, assumindo uma perspectiva da realidade. Este trabalho é um documentário-teatro-dança: o corpo como o espelho do tempo."


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