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MARCELO COELHO
A arte de preencher cupons
Um castigo comum nas escolas de antigamente consistia
em preencher várias páginas de
caderno com a mesma frase. Podia ser auto-acusatória ("Nunca
mais jogarei giz na cabeça da professora"), edificante ("O bom aluno ama seus pais e sua pátria")
ou mnemônica ("A Mesopotâmia
fica entre o Tigre e o Eufrates").
Apelo à imaginação para dar
esses exemplos. Nunca tinha ficado copiando cem vezes a mesma
frase -até recentemente, pois caí
na asneira de fazer um cartão
preferencial numa grande rede de
supermercados, que passou a me
infernizar com promoções.
É assim que não sei quantos
reais em compras me dão direito
a uns tantos papeizinhos, que devo preencher antes de "depositá-los", como dizem, na "urna" do
sorteio.
"Qual o supermercado que dá a
você milhões em prêmios?" Respondo corretamente, com letra
caprichada. Modéstia à parte,
não é uma pergunta difícil. Mas
isso não basta. Como eles acreditam que eu posso ganhar -otimismo de que não compartilho-
, é preciso que eu ponha no papel
o meu nome e o meu endereço,
com o CEP, "de preferência". Na
linha de baixo, o telefone, ou melhor, os telefones. O de casa, o do
escritório, o celular.
Imagino o pessoal do supermercado em pânico. "Nossa, ele ganhou! Contatem-no imediatamente!" A ligação cai na secretária. O desespero toma conta dos
premiadores. "O vôo para Paris
parte em duas horas! Como é que
ele não veio retirar a passagem? O
celular! O celular!"
Mas eu não pude atender o telefone porque estava preenchendo
mais formulários. Para me inscrever no programa de descontos
progressivos da Farmácia Drogalev, pediram-me o CPF e o número do cartão de crédito, que tive
dificuldade em fazer caber nos
quadradinhos correspondentes.
Posso ser bom em preenchimento
de cupons, mas não é que eu seja
um gênio nisso.
Desisto da farmácia. Volto aos
papeizinhos do supermercado.
São uns 30, talvez. Falta colocar o
meu e-mail e o RG em todos. Faz
sentido. Pode haver outro Marcelo que se apresente como ganhador de uma cafeteira ou de um
vale-compras na seção de perfumaria, e o supermercado não há
de querer complicações com a
Justiça. Eles mal sabem do que
sou capaz.
Respiro fundo, completo o último formulário e volto ao início
deste artigo. Entre a velha punição escolar e a atividade a que tenho direito agora, como possuidor do cartão preferencial do supermercado, a diferença é pequena. Está na faixa do 0,00001% de
chance que eu tenho de ganhar
um prêmio que não me interessa.
Mas essa diferença é tudo: uma
longínqua esperança de ganho
transforma a chatice do castigo
num voluntário momento de grafomania.
Vem ao caso uma passagem do
"Tom Sawyer", de Mark Twain.
Era um sábado de calor e o menino estava encarregado de caiar
uma interminável cerca de madeira. Passa um amigo de Tom,
rindo dele ou (não me lembro direito) dirigindo-lhe palavras de
compaixão.
Nosso herói responde com astúcia: está se divertindo imensamente com a tarefa. Ninguém
imagina como é interessante
caiar uma cerca. Tamanha é a
propaganda, que logo se forma
uma fila de meninos, prontos a
pagar a Tom em troca do privilégio de trabalhar também.
Em outro livro antigo -"A Linguagem no Pensamento e na
Ação", de S. I. Hayakawa-, narrava-se uma fábula parecida.
Duas cidadezinhas paupérrimas
eram escolhidas para um programa federal de desenvolvimento.
Os habitantes da primeira cidade
recebiam um montante em dinheiro a que se dera o nome de
"mesada", "ajuda emergencial"
ou coisa parecida. Na segunda cidade, os recursos foram apresentados como "investimento", "prêmio de estímulo à microempresa", "empréstimo" e por aí afora.
Não é difícil imaginar o desfecho da historinha, que simplifiquei bastante. A cidade que recebeu as verbas sob o nome de "investimento" soube prosperar e só
teve fortalecida sua auto-estima.
A outra, objeto de humilhante esmola coletiva, mergulhou mais
na miséria.
Aqui, como em "Tom Sawyer",
é fácil reconhecer a velha cultura
do pragmatismo americano, que
não por acaso inventou a publicidade, as relações públicas e... o
"politicamente correto".
Em princípio, a idéia não é absurda. Palavras contam muito na
prática. Uma bela mulher, aspirante à carreira de modelo, não
terá sucesso se mantiver um nome de batismo como Hermengarda ou Durvalina.
O problema é termos agora de
pedir desculpa às Hermengardas
e Durvalinas. Estou reforçando o
preconceito em torno das portadoras desse nome? Mas nossa modelo, que trocou de nome, está reforçando o preconceito também.
Ela está certa ou errada? Correta
ou incorreta? Talvez exista sempre um fundo de incorreção em
toda correção política, uma vez
que lutar contra um preconceito
significa também reconhecê-lo.
Daí, creio, a conseqüência mais
perversa do "politicamente correto". Seus possíveis benefícios ficam em segundo plano; o que se
alimenta é a vontade de policiar,
de censurar, de descobrir sempre
novas incorreções -no tom de
voz, no olhar, no gesto de quem
fala... Cartilhas e manuais se
transformam rapidamente em
meios de perseguição e exclusão,
mais do que em instrumentos de
igualdade e de entendimento.
Quem quiser melhorar o quadro que experimente mudar o nome da coisa. Em vez de "cartilha
do politicamente correto", pode-se inventar outro título. Não tenho sugestões a dar. O governo
poderia organizar um concurso,
com farta distribuição de cupons
e prêmios ao vencedor. É sempre
uma maneira de manter as pessoas ocupadas, impedindo-as, como diziam as velhas professoras,
de pensar em bobagem. Elas bem
que entendiam de cartilha.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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